ENTREVISTA EXCLUSIVA COM SHIZAMURA
2021-03-05
Shizamura, segundo informação disponível no site do seu webcomic de ficção científica O Sarilho, vive em Portugal, junto ao mar, onde faz banda desenhada e fala com computadores. No que toca ao mundo das artes, dedica-se quase exclusivamente ao referido webcomic. A sua bedê digital está disponível na plataforma Spider Forest – Webcomic Collective, um coletivo casual e sem fins lucrativos de webcomics de qualidade e de leitura gratuita. O projeto é gerido por vários criativos voluntários, com ênfase no trabalho colaborativo e na realização pessoal.
+info: https://sarilho.net
Twitter: @shizamura
Shizamura, segundo informação disponível no site do seu webcomic de ficção científica O Sarilho, vive em Portugal, junto ao mar, onde faz banda desenhada e fala com computadores. No que toca ao mundo das artes, dedica-se quase exclusivamente ao referido webcomic. A sua bedê digital está disponível na plataforma Spider Forest – Webcomic Collective, um coletivo casual e sem fins lucrativos de webcomics de qualidade e de leitura gratuita. O projeto é gerido por vários criativos voluntários, com ênfase no trabalho colaborativo e na realização pessoal.
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Entrevista
Qual é a tua primeira memória de ler banda desenhada? Como fazes a transição de leitora de BD para criadora de BD? Porque achas que este medium é o ideal para as estórias que queres contar?
As minhas memórias de infância da BD são muito corriqueiras. Lembro-me de ter engraçado muito com as pranchas do Zits!, que na altura saía num jornal. Lá ia eu para a última página para ver um conteúdo para o qual eu não era certamente ainda o público-alvo. Tenho ideia também, já andando eu aí no quinto ou sexto ano, de encontrar-me finalmente com BD do Astérix e Obélix que havia na biblioteca da escola. Se a BD me chamava por ser BD, isso não sei dizer. Acho que tinha muito a ver com o facto de serem estórias ilustradas, o desenho dizia-me (e ainda diz) muito. A transição, essa, nem posso dizer que tenha acontecido! Acho que nem tinha bem noção do que a BD era ou podia ser, graças aos meros contactos exporádicos com o meio, mas eu sabia que gostava de desenhar e que queria contar histórias. E essas duas coisas casam muito bem na BD. Há a parte da narrativa, do que eu quero dizer, das palavras que quero usar, mas também há toda a parte ilustrada que diz muito além das palavras. E eu quero muito que os leitores saibam como é que eu vizualizo as coisas. Fora isso, só posso dizer que acho a BD um meio interessante precisamente por causa da forma como me permite não utilizar palavras nenhumas para passar a mensagem que quero. Eu não sou grande fã de descrever os mundos interiores dos meus personagens e prefiro deixar essas interpretações para o leitor. Acho que a BD tem um jeito muito próprio de capturar o silêncio que o romance, por exemplo, não tem.
Porquê o género da ficção científica para te expressares? De onde vem esse teu gosto por este género especulativo?
Já que estava a falar de romances, acho que posso aproveitar o seguimento. Enquanto consumidora de estórias, o meu principal ponto de referência é o romance, é a prosa longa. E o romance nunca envelhece! Acho que se continuam a escrever coisas verdadeiramente inovadoras; a literatura nunca pára de me surpreender. A ficação científica, enquanto género, surgiu-me já um pouco tarde, aos vinte e poucos, quando li a novelização do 2001: Uma Odisseia no Espaço. E que boa ideia eu tive! A ficção científica vai beber a várias coisas que eu já apreciava: a ciência, a especulação, a tecnologia, o engenho humano, a descoberta do desconhecido. Os interessantíssimos e infindáveis “e ses”. Adoro ver a forma como diferentes autores abordam diferentes sociedades em que se alterou este ou aquele factor por via de uma descoberta ou de uma invenção. E daí calcular-se o impacto e estudar-se os efeitos. Para mim está aí o interessante, não tanto na descrição das novas tecnologias ou dos seus grandes feitos, mas das suas consequências societais. E tem também aquilo que, para mim, é a vantagem de ser menos mitologizante que a fantasia, mesmo quando entra no campo da forma como a tecnologia altera a relação que temos com nós próprios e com os nossos corpos, ou quando se começa a falar de transhumanismo ou da potencial evolução da humanidade. Acaba por ser sempre engenhoso, de um certo ângulo. Também sou muito fascinada pelo conceito da inteligência e o que significa isso de poderem existir inteligências diferentes da nossa. Se podemos inclusive criar novos tipos de inteligência, com todas as questões que se levantam daí. Isso, e eu adoro computadores. Estou pronta para comer quantas estórias houver sobre as diferentes encarnações do Multivac.
A tua preferência pelo anime e pela manga é visível no webcomic O Sarilho. Quais são as tuas principais referências da BD e animação asiática no geral e quais foram as principais referências para o teu webcomic em específico?
Essa é uma pergunta com rasteira. Obviamente que eu não posso nem quero esconder que o meu estilo visual foi muito afectado pelo manga e pelo anime, mas os fãs do género que me perdoem: eu não sou tão versada assim. Como a maioria dos portugueses da minha idade, cresci com o Dragon Ball e a Sailor Moon, o que me atirou logo para um universo visual carregadamente asiático. Isso entrou ali na matriz e assim ficou, até porque nunca parei de desenhar, mas só muito mais tarde é que o manga e outras animações entraram na minha vida. Vi os Narutos e Neon Genesis Evangelions e Full Metal Alchemists e Coyboy Bebops, como toda a gente. Ghost in the Shell deixou-me uma profunda impressão, juntamente com Akira. Não visualmente, mas na abordagem que fazem às suas respectivas teses. Mais recentemente, Jojo’s Bizarre Adventure e Dorehodoro. Difícil apontar qualquer um dos títulos como influência directa, porque o que vou buscar a cada um acaba por ser um detalhezinho que me despertou a atenção e que eu vou tentar integrar no que já tenho. Mas também há outras animações às quais fui beber e que se calhar estão mais directamente relacionadas com o nascimento d’O Sarilho. Lembro-me perfeitamente de estar a ver a série de animação Star Wars: Clone Wars quando senti que estava na hora de acordar para a vida e ir criar alguma coisa. Se calhar porque é uma série que pega num conjunto de ideias pré-existentes e sobejamente conhecidas, com ponto de partida e chegada muito bem definidos e conhecidos do expectador, e expande sobre tudo com narrativas muito centradas nos personagens e nas suas experiências durante a guerra, tudo com uma animação que (pronto) vai subindo de qualidade à medida que a série avança. Isto, por sinal, foi na mesma altura em que estava também muito entretida a ler uns bons títulos de ficção científica, acho que foi tudo junto!
A tua narrativa passa-se num futuro pós-apocalíptico, na Europa, com um cheirinho a império romano futurista. Desenhaste inclusivamente alguns mapas para situar o leitor. Como foi o teu processo de worldbuilding? E como abordaste a escrita do guião?
Os mapas têm dupla função: são visualmente interessantíssimos – eu adoro mapas, faço colecção –, contando uma história que vai muito para lá do que está escrito, mas que de outra forma eu não teria espaço para mostrar. Além disso, têm a vantagem de serem óptimos para me organizar mentalmente em termos de onde é que a acção decorre, quais as localizações dos vários eventos e como se tem de fazer a transição do local A para o local B. Sobre a geografia dos sítios, é muito colado ao mundo real, nada de particularmente inventivo. Eu queria uma história que se passasse em Portugal, mas que fosse de encontro ao tipo de localização que normalmente não encontramos nas histórias que contamos sobre nós próprios. O Sarilho é uma história de ficção científica num futuro distante em que não se pode falar de Portugal ou de portugueses, mas os lugares estão lá, a portugalidade está lá. Não conseguia imaginar a estória sem esse elemento. Depois de definida a localização, a construção do mundo seguiu uma velha máxima que já nem sei onde ouvi. Diz-se que é bom escrever sobre temas de que se gosta e eu escolhi três coisas:
1) o império romano (ou História, para ser mais lata); 2) computadores; 3) vida extraterrestre.
É meter os temas na misturadora e ver o que sai! Porque não uma estória de ficção científica passada em território português, com romanos do futuro que falam com computadores e encontram um extraterrestre? O mundo depois também cresce por força do enredo. A boa parte de trabalhar num webcomic é que as páginas demoram a sair – eu publico uma por semana – o que me dá muito tempo para mastigar as ideias.
O Sarilho não assenta nos mesmos pilares que assentava quando começou, há quatro anos. Os pontos principais da estória são os mesmos, o que muda é a forma como chego lá. Quando comecei sabia mais ou menos a tese que queria desenvolver e quais os pontos principais pelos quais a estória teria forçosamente de passar e como estes afectariam os personagens principais. O resto era mistério. Eu sou muito da abordagem de ir desenvolvendo as coisas à medida que preciso delas. Quando comecei o desenvolvimento o mundo era muito pequeno mas, à medida que a estória avançou vi-me obrigada a pensar em como unir os pontos, como motivar os personagens, que novos personagens são necessários, como justificar os processos e instituições que existem e como transmitir isso tudo no parco espaço narrativo que tenho. Há muita coisa que acaba por ficar quase como ruído de fundo, uns mapas aqui, uns cartazes propagandísticos ali, porque também não quero interromper a narrativa para explicar esses detalhes. A BD é um meio muito visual e é importante não confundir as técnicas narrativas que funcionam facilmente em prosa com o que funciona em BD. O próprio fluxo de leitura é diferente, e as artimanhas também.
Escrever, confesso, não é o meu forte. Eu gosto muito de escrever, mas escrita criativa para mim é complicado. Os meus enredos são muito para mim, já que eu visto todos os papéis da produção e trato da escrita, do desenho, do sítio web... Como não tenho essa pressão de me fazer entender por terceiros, acabo por escrever muito à vontade e não sigo grandes regras. Formatos e regras, eu sei que os há, só escolho não aplicar porque não me compensam. Escrevo tudo em prosa, só com a ocasional nota de que me devo focar num objecto ou numa expressão. As decisões visuais ficam para depois. O principal foco da fase de escrita é capturar as expressões e palavras concretas que quero ter na página – e eu dou muita importância à escolha das palavras.
Os mapas têm dupla função: são visualmente interessantíssimos – eu adoro mapas, faço colecção –, contando uma história que vai muito para lá do que está escrito, mas que de outra forma eu não teria espaço para mostrar. Além disso, têm a vantagem de serem óptimos para me organizar mentalmente em termos de onde é que a acção decorre, quais as localizações dos vários eventos e como se tem de fazer a transição do local A para o local B. Sobre a geografia dos sítios, é muito colado ao mundo real, nada de particularmente inventivo. Eu queria uma história que se passasse em Portugal, mas que fosse de encontro ao tipo de localização que normalmente não encontramos nas histórias que contamos sobre nós próprios. O Sarilho é uma história de ficção científica num futuro distante em que não se pode falar de Portugal ou de portugueses, mas os lugares estão lá, a portugalidade está lá. Não conseguia imaginar a estória sem esse elemento. Depois de definida a localização, a construção do mundo seguiu uma velha máxima que já nem sei onde ouvi. Diz-se que é bom escrever sobre temas de que se gosta e eu escolhi três coisas:
1) o império romano (ou História, para ser mais lata); 2) computadores; 3) vida extraterrestre.
É meter os temas na misturadora e ver o que sai! Porque não uma estória de ficção científica passada em território português, com romanos do futuro que falam com computadores e encontram um extraterrestre? O mundo depois também cresce por força do enredo. A boa parte de trabalhar num webcomic é que as páginas demoram a sair – eu publico uma por semana – o que me dá muito tempo para mastigar as ideias.
O Sarilho não assenta nos mesmos pilares que assentava quando começou, há quatro anos. Os pontos principais da estória são os mesmos, o que muda é a forma como chego lá. Quando comecei sabia mais ou menos a tese que queria desenvolver e quais os pontos principais pelos quais a estória teria forçosamente de passar e como estes afectariam os personagens principais. O resto era mistério. Eu sou muito da abordagem de ir desenvolvendo as coisas à medida que preciso delas. Quando comecei o desenvolvimento o mundo era muito pequeno mas, à medida que a estória avançou vi-me obrigada a pensar em como unir os pontos, como motivar os personagens, que novos personagens são necessários, como justificar os processos e instituições que existem e como transmitir isso tudo no parco espaço narrativo que tenho. Há muita coisa que acaba por ficar quase como ruído de fundo, uns mapas aqui, uns cartazes propagandísticos ali, porque também não quero interromper a narrativa para explicar esses detalhes. A BD é um meio muito visual e é importante não confundir as técnicas narrativas que funcionam facilmente em prosa com o que funciona em BD. O próprio fluxo de leitura é diferente, e as artimanhas também.
Escrever, confesso, não é o meu forte. Eu gosto muito de escrever, mas escrita criativa para mim é complicado. Os meus enredos são muito para mim, já que eu visto todos os papéis da produção e trato da escrita, do desenho, do sítio web... Como não tenho essa pressão de me fazer entender por terceiros, acabo por escrever muito à vontade e não sigo grandes regras. Formatos e regras, eu sei que os há, só escolho não aplicar porque não me compensam. Escrevo tudo em prosa, só com a ocasional nota de que me devo focar num objecto ou numa expressão. As decisões visuais ficam para depois. O principal foco da fase de escrita é capturar as expressões e palavras concretas que quero ter na página – e eu dou muita importância à escolha das palavras.
Ainda em relação ao teu processo criativo: como é que fazes a transição do guião para a página finalizada? Qual é o teu processo de trabalho?
Como estava a dizer, o meu guião não entra em detalhes visuais, com excepção da indicação de objectos que devam estar forçosamente em cena, ou com os quais os personagens interajam directamente. O guião foca-se em palavras, frases e interacções que têm de acontecer e em que ordem. Cenas de acção, no geral, não são descritas no guião para lá de uma lista de pontos e aparecem quase totalmente só na fase seguinte. No storyboard tento perceber quais os ângulos que vão representar cada frase ou acção, ajuda-me a perceber a velocidade da cena. Do storyboard passo para as pranchas, que terão em média entre 5 e 6 vinhetas. Tento não ir muito além disso, para não saturar demasiado, até pelo formato horizontal que escolhi. Claro que nada está em escrito em pedra e que cada prancha é uma prancha, e a necessidade de cada momento é que vai determinar o produto final.
Tendo escolhido quais as vinhetas que vão ficar e as suas posições relativas, passo para a fase de esboço. Ocasionalmente, esboço uma cena inteira, que pode ter várias pranchas, e depois vou trabalhando uma de cada vez. Mas nem sempre foi assim; quando comecei a trabalhar no webcomic e tinha menos noção do trabalho que isso envolvia e um menor domínio sobre as técnicas que uso – e, consequentemente, demorava tudo muito mais tempo –, fazia quase sempre prancha a prancha, do início ao fim, quase às cegas. Acho que se nota bem, principalmente no primeiro capítulo. À medida que comecei a dominar melhor os meus processos e a fazer melhor gestão do meu tempo é que avancei para fazer mais páginas de cada vez, trabalhando cenas inteiras: o que definitivamente ajuda muito com o andamento e velocidade das cenas.
Tens algumas vinhetas animadas que permitem uma imersão interessante na narrativa. Como é esse processo em termos criativos e práticos?
Não é muito diferente do processo normal, porque as minhas animações não são muito orgânicas, não colocam uma grande distância entre o desenho e o produto animado. Em termos práticos é quase tudo movimentação de elementos, e alterações de cor. Ocasionalmente, muito ocasionalmente, há alguma animação mais orgânica com mais de dois frames. Quanto à escolha, aqui há duas hipóteses: ou eu li o guião e achei que a cena devia ser totalmente animada (ou ter elementos que vão fora das pranchas), e trabalho a partir desse pressuposto, ou chego no fim e percebo que a cena exige mais impacto do que consegui transmitir com a linguagem corporal dos personagens e com a palete.
É sempre uma questão de impacto, porque não quero abusar da sua aplicação. Quando me lancei a fazer O Sarilho, o objectivo sempre foi que a estória fosse um webcomic primeiro, com a versão física a ser uma distante possibilidade. O plano sempre foi aproveitar-me das potencialidades de um sítio web para transmitir informação para lá do que está na prancha, e as animações são apenas uma das maneiras de conseguir isso. Gosto da ideia de ter vinhetas que saltam literalmente para fora da caixa e chocam o leitor. Geram, por norma, muito boas reacções e são das páginas mais memoráveis. Mas o sítio vai além disso, tenho páginas para descrever os personagens que fornecem informação extra, há páginas para descrição dos lugares, há a forma como o próprio site modifica o contexto visual à volta de uma cena... Não são elementos fundamentais para se perceber a estória, mas fazem parte da experiência.
Em termos de adaptação para outros media, tens algum objetivo específico para esta narrativa e o storyworld que construíste?
Como já disse, O Sarilho foi concebido especificamente para ser um webcomic e isso guiou todas as minhas escolhas. O formato horizontal vem unicamente da expectativa de que será lido num ecrã de computador (se bem que a maré está a mudar, e o formato vertical, com a ubiquitização do telemóvel, é cada vez mais popular).
As animações e as hiperligações não se traduzem para outros media, excepto talvez a própria animação (para a qual eu não tenho nem o talento nem os meios). O Sarilho conta com dois volumes impressos e o trabalho de adaptação foi interessante. Há coisas que o meu planeamento inicial para o ecrã não antevia, como é o caso dos spreads, que aspecto estas duas páginas vão ter lado a lado, se o virar da página vai revelar uma mudança de tom, quais as consequências de imprimir um livro em formato horizontal e como é que isso afecta a leitura. Felizmente, hoje já conto com mais experiência no bolso e tento aproveitar melhor as possibilidades que o formato impresso traz. De qualquer forma, O Sarilho é um trabalho para ser lido num navegador web.
Como estava a dizer, o meu guião não entra em detalhes visuais, com excepção da indicação de objectos que devam estar forçosamente em cena, ou com os quais os personagens interajam directamente. O guião foca-se em palavras, frases e interacções que têm de acontecer e em que ordem. Cenas de acção, no geral, não são descritas no guião para lá de uma lista de pontos e aparecem quase totalmente só na fase seguinte. No storyboard tento perceber quais os ângulos que vão representar cada frase ou acção, ajuda-me a perceber a velocidade da cena. Do storyboard passo para as pranchas, que terão em média entre 5 e 6 vinhetas. Tento não ir muito além disso, para não saturar demasiado, até pelo formato horizontal que escolhi. Claro que nada está em escrito em pedra e que cada prancha é uma prancha, e a necessidade de cada momento é que vai determinar o produto final.
Tendo escolhido quais as vinhetas que vão ficar e as suas posições relativas, passo para a fase de esboço. Ocasionalmente, esboço uma cena inteira, que pode ter várias pranchas, e depois vou trabalhando uma de cada vez. Mas nem sempre foi assim; quando comecei a trabalhar no webcomic e tinha menos noção do trabalho que isso envolvia e um menor domínio sobre as técnicas que uso – e, consequentemente, demorava tudo muito mais tempo –, fazia quase sempre prancha a prancha, do início ao fim, quase às cegas. Acho que se nota bem, principalmente no primeiro capítulo. À medida que comecei a dominar melhor os meus processos e a fazer melhor gestão do meu tempo é que avancei para fazer mais páginas de cada vez, trabalhando cenas inteiras: o que definitivamente ajuda muito com o andamento e velocidade das cenas.
Tens algumas vinhetas animadas que permitem uma imersão interessante na narrativa. Como é esse processo em termos criativos e práticos?
Não é muito diferente do processo normal, porque as minhas animações não são muito orgânicas, não colocam uma grande distância entre o desenho e o produto animado. Em termos práticos é quase tudo movimentação de elementos, e alterações de cor. Ocasionalmente, muito ocasionalmente, há alguma animação mais orgânica com mais de dois frames. Quanto à escolha, aqui há duas hipóteses: ou eu li o guião e achei que a cena devia ser totalmente animada (ou ter elementos que vão fora das pranchas), e trabalho a partir desse pressuposto, ou chego no fim e percebo que a cena exige mais impacto do que consegui transmitir com a linguagem corporal dos personagens e com a palete.
É sempre uma questão de impacto, porque não quero abusar da sua aplicação. Quando me lancei a fazer O Sarilho, o objectivo sempre foi que a estória fosse um webcomic primeiro, com a versão física a ser uma distante possibilidade. O plano sempre foi aproveitar-me das potencialidades de um sítio web para transmitir informação para lá do que está na prancha, e as animações são apenas uma das maneiras de conseguir isso. Gosto da ideia de ter vinhetas que saltam literalmente para fora da caixa e chocam o leitor. Geram, por norma, muito boas reacções e são das páginas mais memoráveis. Mas o sítio vai além disso, tenho páginas para descrever os personagens que fornecem informação extra, há páginas para descrição dos lugares, há a forma como o próprio site modifica o contexto visual à volta de uma cena... Não são elementos fundamentais para se perceber a estória, mas fazem parte da experiência.
Em termos de adaptação para outros media, tens algum objetivo específico para esta narrativa e o storyworld que construíste?
Como já disse, O Sarilho foi concebido especificamente para ser um webcomic e isso guiou todas as minhas escolhas. O formato horizontal vem unicamente da expectativa de que será lido num ecrã de computador (se bem que a maré está a mudar, e o formato vertical, com a ubiquitização do telemóvel, é cada vez mais popular).
As animações e as hiperligações não se traduzem para outros media, excepto talvez a própria animação (para a qual eu não tenho nem o talento nem os meios). O Sarilho conta com dois volumes impressos e o trabalho de adaptação foi interessante. Há coisas que o meu planeamento inicial para o ecrã não antevia, como é o caso dos spreads, que aspecto estas duas páginas vão ter lado a lado, se o virar da página vai revelar uma mudança de tom, quais as consequências de imprimir um livro em formato horizontal e como é que isso afecta a leitura. Felizmente, hoje já conto com mais experiência no bolso e tento aproveitar melhor as possibilidades que o formato impresso traz. De qualquer forma, O Sarilho é um trabalho para ser lido num navegador web.
Quando pensas concluir este webcomic, qual é a estimativa? Depois deste ‘sarilho’ tens mais algum projeto na manga que possas partilhar?
Excelente questão. Como eu mencionei antes, o mundo vai-se construindo na medida do necessário e, apesar de eu saber os pontos gerais e essenciais da estória, eu não sei ainda como vou saltar de uns para os outros. Uma coisa que me parecia que ia durar pouco tempo, o episódio introdutório da queda do satélite, acabou por demorar muito mais do que eu imaginava e ter ramificações muito mais extensas.
O que é bom por um lado, porque me permite criar uma história mais rica, mas é mau por outro, porque não consigo precisar exactamente quando será o fim. Há muitos personagens que se tornaram interessantes pelo caminho e agora carregam temas que quero explorar, e todas essas decisões ocupam tempo narrativo, e tempo narrativo implica tempo a desenhar, e tempo para publicar. Mas tenho todo o tempo do mundo, até porque sempre fui uma mulher de um projecto só, e neste momento O Sarilho é o destino de toda a minha energia criativa.
Em termos de webcomics, que plataformas utilizas e que estórias andas a ler neste momento? Já agora, que webcomics recomendas daqueles que tens lido nos últimos anos?
Sobre plataformas, podíamos estar aqui o dia inteiro a discutir o assunto. Eu pessoalmente não sou muito a favor, acho que trazem uma monopolização de formatos e de ideias que não é muito benéfica no longo prazo. Por outro lado, também democratizam um pouco a ideia do webcomic, porque não tens de pagar e construir o teu sítio na web para poderes publicar o teu trabalho e atingir uma audiência. Acho que é por isso que os webcomics são mais populares do que nunca, mas também mais uniformes que nunca. Enfim, como eu disse, temos aqui pano para mangas, e se me ponho a discutir isto nunca mais saímos daqui.
Mas no que toca a webcomics, ainda leio uns quantos, porque é bom saber o que andam os meus pares a fazer e é sempre bom interagir com outros autores que passam pelas mesmas experiências que eu. Aconselho vivamente a procurar sítios com listagens de webcomics, ou mesmo os colectivos, que também agregam bons e variados trabalhos. O bom dos webcomics é que ainda são um meio muito livre e no qual se podem contar estórias que normalmente ficam de fora dos grande media. As estórias estão cá fora, é uma questão de procurar. Recomendações posso até fazer algumas, sem nenhuma ordem de relevância em particular:
- Ghost Junk Sickness - https://www.ghostjunksickness.com/ - uma ficção científica/aventura/mistério que bebe muito do formato shonen e que tem um sentido de acção impressionante;
- Heirs of the Veil – http://heirsoftheveil.fervorcraft.de/ - uma estória de fantasia moderna que segue uma jovem bruxa à procura da mãe e que toca em várias questões sobre identidade e aceitação de uma forma muito terna;
- Phantomarine - http://www.phantomarine.com/ - que podia perfeitamente ser uma série de animação de tão bem engendrada que está;
- Kill Six Billion Demons - https://killsixbilliondemons.com/ - exactamente o que diz no título;
- XII - https://xiicomic.com/magic-and-muses/ - miúdas mágicas e mistério, fugindo a muitos dos lugares-comuns do género e apresentando um elenco diverso e interessante;
- The Pale - http://thepalecomic.com/ - um mistério em que um detective do FBI tenta apanhar um assassino em série e lida com os seus próprios segredos;
- Sob Contracto - https://tapas.io/series/Sob-Contrato/info - segue as aventuras de dois detectives particulares que resolvem exclusivamente casos caricatos e com um humor muito absurdo mas sempre fresco;
- Sink your Hookteeth - https://hookteethcomic.com/ - uma estória sobre encontrar o amor nos braços de criaturas do mar profundo num mundo que não é exactamente igual ao nosso.
E mais tempo tivesse mais tempo aqui ficava.
Entrevistador: Marco Fraga Silva
Artigo web: Sérgio Santos
Futuramente continuarão a ser publicadas entrevistas referentes a várias personalidades de destaque ligadas ao universo da BD.