ENTREVISTA EXCLUSIVA COM NUNO PEREIRA DE SOUSA
2021-01-03
Nuno Pereira de Sousa dedica-se, há duas décadas, à promoção da banda desenhada. Tem vários textos sobre BD publicados em diferentes locais da internet, jornais da especialidade e revistas. Foi fundador e administrador de diferentes blogs, portais e sites dedicadas à temática, sendo a mais recente plataforma o site Bandas Desenhadas. Dos diferentes livros de que é autor, Formas de Pensar a BD é o único dedicado à banda desenhada. Moderou mesas-redondas, foi curador de diversas exposições, editou e-zines e organizou workshops, portfolio reviews e a vinda de autores e editores estrangeiros a Portugal. Inexplicavelmente, conseguiu ainda ter tempo para obter formação académica sobre BD, ser jurado dos mais diversos prémios dedicados à banda desenhada e ser consultor editorial freelancer.
+info: bandasdesenhadas.com
Nuno Pereira de Sousa dedica-se, há duas décadas, à promoção da banda desenhada. Tem vários textos sobre BD publicados em diferentes locais da internet, jornais da especialidade e revistas. Foi fundador e administrador de diferentes blogs, portais e sites dedicadas à temática, sendo a mais recente plataforma o site Bandas Desenhadas. Dos diferentes livros de que é autor, Formas de Pensar a BD é o único dedicado à banda desenhada. Moderou mesas-redondas, foi curador de diversas exposições, editou e-zines e organizou workshops, portfolio reviews e a vinda de autores e editores estrangeiros a Portugal. Inexplicavelmente, conseguiu ainda ter tempo para obter formação académica sobre BD, ser jurado dos mais diversos prémios dedicados à banda desenhada e ser consultor editorial freelancer.
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Entrevista
Nuno, muito obrigado pela disponibilidade para esta entrevista. Poderíamos falar um pouco da tua relação com a BD?
Desde a minha infância, inclusivamente na pré-alfabetização, que a BD faz parte da minha vida enquanto leitor. Os meus pais incentivavam o prazer que tinha na leitura e a minha biblioteca pessoal crescia continuamente, repleta de obras de ficção e não-ficção dirigidas a crianças e jovens, fosse em prosa, poesia ou banda desenhada. Quando terminei a escola primária (o atual 1.o ciclo do ensino básico), a minha biblioteca já tinha uma dimensão muito... considerável (risos). Tal converteu-se, mais tarde, em colecionismo, inclusivamente de BD, mas sempre com uma forte componente associada à leitura.
Para se ter uma noção da importância que a biblioteca ocupava na minha vida, no início da adolescência, elaborei, inclusivamente, os seus primeiros registos computorizados, tendo adaptado um software de agenda de contactos para uma base de dados de livros, com os conhecimentos que tinha autoaprendido em linguagem BASIC. Estávamos em 1984. Há que confessar, no entanto, que a BD foi algo preterida na década de 90.
Foram os anos da faculdade e de muitas outras descobertas. Apesar do estudo, das viagens, da melomania e do cinema – em especial, de autor – o tempo dedicado à leitura era generoso, mas era a prosa contemporânea o que mais crescia na minha biblioteca e não tanto a banda desenhada.
A BD regressou em força no final dessa década, com o meu primeiro computador ligado à internet, onde, entre muitos outros assuntos, liguei-me a alguns grupos de discussão sobre BD. E o interesse raramente esmoreceu desde então. Muitas das pessoas que virtualmente conheci no final do milénio passado e início deste continuam ligadas de uma forma ou de outra ao meio. Comecei a partilhar num fórum as minhas sugestões de leitura e pequenas críticas às obras que ia lendo, com origem um pouco por tudo o mundo, mas com especial incidência nas edições nacionais e norte-americanas (na altura, lia muitos livros de BD norte- americana) e, pouco tempo depois, iniciei um blog nesse formato designado por bedê.
Na altura, existia muito pouca oferta na internet sobre esta temática, fosse nacional ou estrangeira. A web 2.0 ainda nem sequer existia. Para terem uma noção, quando uma revista tentou fazer um top dos sites sobre banda desenhada nacionais o top 3 era ocupado pelo site institucional da Bedeteca de Lisboa, um portal de notícias nacionais com um animado fórum de discussão e o meu blog pessoal. Ao meu blog, seguiu-se um site e um portal especializado em BD, formulados em equipa.
Aos poucos, a minha bedeteca pessoal foi-se transformando num instrumento de investigação (que também me gera entretenimento, obviamente). O resto foi uma evolução natural... Além da escrita do livro Formas de Pensar a BD (Pedranocharco, 2007), tenho escrito artigos sobre BD em diversos jornais, revistas e sites, fui autor de um programa radiofónico, fui jurado nos mais diversos prémios, fiz um curso académico sobre banda desenhada e continuo a partilhar informação sobre BD no site Bandas Desenhadas...
Quando surgiu a criação do site Bandas Desenhadas? Como foi evoluindo ao longo do tempo?
Esta pergunta evoca acontecimentos passados algum tempo antes da criação do site Bandas Desenhadas propriamente dito. Para além do blog bedê, iniciei no primeiro quinquénio da década de 2000 o primeiro site em colaboração, o Tugópolis, com o Rodrigo Ramos. Construiu-se um site de raiz, com os seus conhecimentos de informática, sendo este o primeiro site português dedicado à BD Disney. Era uma base de dados das revistas publicadas em Portugal. O inducks, um site internacional sobre a BD Disney publicada um pouco por todo o mundo, fez inclusivamente uma parceria connosco, utilizando, na altura, as imagens das capas armazenadas no nosso site, que tínhamos digitalizado. Esta boa experiência colaborativa, perante a ausência de sites sobre BD com material que nos interessava, para além dos já citados e mais uma ou outra raridade, levou-nos a ter a ideia de construirmos um portal que, por um lado, abordasse um pouco da BD que estava a ser publicada em todo o mundo, e por outro lado, apresentasse conteúdos diferentes do que existia em Portugal.
Aliámo-nos a 4 outras pessoas que tinham prazer em escrever sobre BD e que se interessaram pelo projeto e inaugurámos o portal BDesenhada.com – A Volta ao Mundo da BD no primeiro dia da primavera de 2006. Este portal exclusivamente dedicado à BD publicou, no primeiro ano de atividade, 1020 notícias, 322 críticas, 76 colunas editoriais (incluindo de diversos colaboradores), 42 entrevistas e 38 artigos, entre outros conteúdos (webcomics, ilustrações, previews...), números inéditos em Portugal (e que não mais foram atingidos por nenhum site dedicado ao tema) que, aliados à qualidade e seriedade com que a BD foi abordada, transformaram o portal num site incontornável a nível nacional juntos dos que se interessavam pela BD. Nada disto foi simples. As editoras tiveram de compreender porque queríamos imagens do miolo dos livros, algo que não enviavam anteriormente; a publicação de e-zines no portal foi praticamente pioneira no país; a quantidade vertiginosa de entrevistas, muitas a autores estrangeiros, obrigava a um rigoroso plano semanal de investigação, elaboração de perguntas e tradução de respostas, etc...
Mas, mais desgastante, foi que, rapidamente, a maioria dos elementos do sexteto não estava preparada para este ritmo e foi desistindo da sua participação. Para terem uma ideia, para ser possível ter diferentes conteúdos disponíveis constantemente, durante um ano eu trabalhei no site diariamente, incluindo fins-de-semana, entre as 18h e as 3 ou 4h00 da manhã, com 2 a 3 horas de sono por dia. Obviamente, chegou a um ponto insustentável e quando, um dia, adormeci por breves instantes ao volante na autoestrada, a caminho do trabalho - sonhei que não tinha conseguido fazer uma curva por ter adormecido, tendo ido contra umas árvores e morrido; isso fez-me acordar a tempo de conseguir fazer a tal curva, enquanto olhava na realidade para as árvores com que tinha sonhado -, decidi que não seria possível manter esse ritmo. Na altura, ainda houve um artigo comemorativo de 1 ano de existência do nosso portal num jornal, onde se incentiva a que novos colaboradores aderissem ao projeto, mas tal não foi suficiente para o portal continuar nos mesmos moldes e acabou mais tarde por encerrar. Em 2013, não me recordo exatamente porquê, quis pesquisar algo sobre BD e constatei que, se a oferta tinha aumentado a nível de blogs, muitas das áreas em que tínhamos inovado com o nosso portal, mantinham-se praticamente intocáveis.
Contactei na altura com alguns bloggers, alguns dos quais me disseram que o encerramento do BDesenhada.com tinha sido o catalisador de criar o seu próprio blog e que o trabalho que tínhamos tido com as editoras tinha sido fundamental, tendo as mesmas deixado de olhar com desconfiança para blogs e sites e desenvolvido parcerias com essas plataformas. As sugestões que fui dando a esses bloggers, não foram, obviamente, implementadas, pelo que estava novamente a sentir aquela insatisfação com o conteúdo que estava disponível na internet sobre banda desenhada.
Quando li algures de que o querido e saudoso amigo Geraldes Lino estava a pensar em se afastar do meio – ou, pelo menos, diminuir as suas atividades em prol da divulgação da BD, aquilo mexeu muito comigo. Constatei que, ao contrário dele, eu não estava há alguns anos a fazer nada em prol da BD e senti que estava na altura de voltar a vestir a camisola. Não queria, no entanto, regressar à loucura do dia-a-dia do BDesenhada.com, pelo que criei no dia 2 de agosto de 2013 um singelo blog pessoal denominado bd, no qual queria não só fazer crítica, mas também alguma investigação ligada à área, no meu próprio tempo. Sendo a minha formação académica científica, tinha, previamente, dificuldade em encarar os estudos qualitativos como relevantes. No entanto, entretanto, tinha tido uma cadeira que abordou tais estudos num curso de pós-graduação e olhava agora para os mesmos de outra forma. Pouco tempo depois, recebi um convite para integrar como jurado os prémios de banda desenhada que tinham o termo profissional na sua designação.
Com os cursos superiores de banda desenhada que, entretanto, tinham surgido no país, na altura não me senti à vontade para aceitar tal, e recusei o convite mesmo quando um dos organizadores me explicou que a minha recusa dificilmente originaria que alguém de áreas profissionais que fui dando como sugestões, integrasse o júri – como depois verifiquei que não aconteceu. Isso originou que quisesse obter formação na área, de modo a complementar a experiência que já tinha. Quando tive conhecimento do curso Comic Books and Graphic Novels, organizado pelo Professor William Kuskin do Departamento de Inglês da Universidade do Colorado em Boulder, via a plataforma Coursera, inscrevi-me. Este curso debateu a história da Banda Desenhada norte-americana, bem como a reflexão sobre ensaios críticos a importantes bandas desenhadas daquele país, tendo como base que a BD é literatura. Esta minha tentativa de obter formação originou com que passasse com distinção e obtido a nota final de 100%, o que me deu alento para continuar a trabalhar no meio com mais afinco. Entretanto, o Rodrigo Ramos descobriu o meu blog pessoal e muito naturalmente começámos a conversar e decidimos transformar o bd, mantendo todos os artigos do blog, no site Bandas Desenhadas, em conjunto com a Carla Ramos e a Susana Figueiredo. Essa foi a primeira grande transformação. As restantes, têm sido mais suaves, desde o início da participação dos mais diversos colaboradores no nosso site, às diferentes áreas que temos vindo cumulativamente a abordar, pouco a pouco.
Como nasceu o programa Bandas transmitido pela Rádio Zero?
Lembram-se do meu primeiro computador ligado à internet em 1999? Ora bem, entre os vários grupos de discussão em que me inscrevi, incluía-se a música brasileira. Conheci, virtualmente, pessoas incríveis e acabei por criar um grupo luso-brasileiro (e com alguns participantes que falavam português mas eram dos EUA e outros países europeus) de discussão cultural, onde se abordavam as mais diferentes artes. Tal originou, inclusivamente, alguns e-zines com as mais diferentes formas de expressão, incluindo a BD. Os membros do grupo eram muito próximos e fomo-nos conhecendo quase todos ao longo de diversas viagens, mantendo-se a amizade até aos dias de hoje. Em 2014, numa conversa com um amigo brasileiro desse grupo, que reside há décadas em Lisboa, ele disse-me que estava a produzir com uma nossa amiga brasileira um programa radiofónico numa rádio brasileira, o qua também era transmitido na Rádio Zero, uma rádio de cariz universitário do Instituto Superior Técnico, em Lisboa.
Isso deu-me a ideia de aliar duas das minhas grandes paixões num único local, a música e a banda desenhada sob a designação ambivalente de Bandas. Aprendi a gravar áudio no computador e a trabalhar com software de edição de som e mostrei-lhe uma emissão-teste. Como a resposta foi positiva, contactei a Rádio Zero, solicitaram-me a emissão-teste e o programa foi aprovado para integrar a programação na próxima renovação da grelha. Foi difundido durante 3 anos com um total de 70 emissões. O tempo que era necessário despender para cada programa de 1 hora era exponencialmente maior, pelo que, com o crescimento do site Bandas Desenhadas, acabei por tomar a difícil decisão de suspendê-lo.
Poderíamos falar como foram criados os Prémios BD Disney?
Com o blog bedê, o site Tugópolis e o portal BDesenhada.com, comecei a estar novamente atento aos lançamentos de BD Disney em Portugal, algo que tinha parado de ler no início da adolescência. Comecei a colaborar também com o site internacional inducks e a ter uma perspetiva diferente, enquanto adulto, da BD Disney, dos seus autores, das diferentes abordagens nos diferentes países em que era produzida, etc. Em Portugal, a BD Disney é frequentemente desconsiderada pela maioria dos leitores, mas não é assim em todos os países. Em Itália, por exemplo, é com satisfação que pais e crianças vêm esta banda desenhada como um auxiliar do processo de alfabetização das crianças, tendo, inclusivamente, a redação a preocupação de utilizar um vocabulário vasto - por oposição ao básico -, não sendo paternalista para com as crianças e obrigando-as a descobrir os significados dos mais variados vocábulos. Por outro lado, a nível gráfico também não é material a desconsiderar.
Presenciei, por exemplo, em Beja, um ilustrador que muito admiro, o norte-americano Tyler Crook, a perguntar ao italiano Enrico Faccini como conseguia fazer isto ou aquilo, ao visitar a sua exposição. Já para não falar do impacto que as exposições do Paolo Mottura e Fabio Celoni tiveram nos visitantes em Beja. Sabendo do meu interesse na BD Disney, em 2014 a editora Goody fez-me um convite. As vendas estavam a cair a pique e as sugestões que foram seguindo de um ou outro fanboy tinham ainda feito afundá-las mais. A Goody tinha chegado à conclusão que o produto tinha chegado ao final do seu ciclo de vida mas a editora da linha Disney queria fazer uma última aposta, contratando-me como consultor externo para fazer a seleção do material a publicar em cada uma das revistas. Confesso que sempre me fascinaram as causas perdidas e aceitei, empenhando-me de corpo e alma à hercúlea tarefa.
Não me devo ter saído mal, pois a linha nunca foi cancelada até à insolvência da Goody, mais de 4 anos depois. Relembro que a BD Disney, na altura, era a BD mais editada no nosso país, fosse a nível de páginas, de histórias ou de número total de publicações – e, para mim, era estranho ser, involuntariamente, o responsável pela seleção da maioria da BD publicada no nosso país. Editar BD Disney não é fácil e das conversas que tive com editores de outros países trabalha-se com um produto que tem a ambivalência de ser produzido para poder ser lido por crianças, mas que é, na atualidade, maioritariamente comprado por adultos para consumo próprio. Esse era um dos grandes problemas da BD Disney editada pela Goody, pois rapidamente constatei que a quase totalidade do material que costumavam publicar era desinteressante e demasiado infantil para os leitores. O outro grande problema, era, no início, só terem acesso a material italiano, o que não permitia que se publicassem certos autores que os leitores gostavam e acabou por gerar uma onda contra o material italiano, aparentemente por desconhecimento que o material italiano sempre tinha existido nas revistas Disney nacionais desde 1980. De qualquer modo, numa das conversas com o Rodrigo Ramos, que relembro-vos ter sido o cofundador do Tugópolis, lamentávamos o patamar tão baixo em que usualmente é colocada a BD Disney. Daí à ideia de se organizarem uns Prémios que promovessem a BD Disney foi um passo.
No entanto, dado o meu trabalho para a Goody, só contactei inicialmente alguns jurados e deixei a organização dos Prémios a cargo da restante equipa nuclear do Bandas Desenhadas, completamente independente da Goody. E fizeram um excelente trabalho! Foi o primeiro prémio a nível nacional no qual aos jurados foi cedida a totalidade do material editado para apreciação. O que não deve ter sido fácil. Em cada uma das edições dos Prémios, cada um dos jurados teve de ler dezenas de milhar de páginas. Mas o Pedro Moura, o Pedro Bouça, o Miguel Mendonça, o Gabriel Martins e o Filipe Abranches foram veros profissionais. Um dos jurados, o Pedro Moura, confessou-me mais tarde ter começado a olhar para a BD Disney de uma forma completamente diferente, onde o material desinteressante convive com excelentes exemplos de boa banda desenhada, como é característico das grandes editoras. Para além da importância intrínseca dos Prémios BD Disney, abriram também a porta a outras formas de divulgação da BD Disney ao público em geral no nosso país.
Como foram criados os recentes Prémios de Banda Desenhada, organizados pelo site?
Criámos os Prémios Bandas Desenhadas em 2018. Por um lado, os Prémios BD Disney tinham sido suspensos devido à ausência de BD Disney no nosso país; por outro, estávamos insatisfeitos com o facto de muitos autores e bandas desenhadas merecedoras serem constantemente ignoradas pelos prémios portugueses que concernem à banda desenhada.
Vários de nós, já tinham a experiência de jurados noutros prémios e estavam perfeitamente conscientes dos problemas – e, frequentemente, a difícil resolução dos mesmos – das diferentes organizações. Durante vários anos, partilhei estas preocupações num grupo de trabalho com elementos não ligados ao Bandas Desenhadas, enquanto se tentava organizar uns prémios que eliminassem as questões que tínhamos em relação aos demais prémios, bem como se focassem também na BD nacional que era frequentemente ignorada pelos prémios. No fim, o grupo chegou a um beco sem saída e partiram do mesmo duas linhas de ação para a organização de dois prémios diferentes. Tanto quanto tenho conhecimento, a outra linha (ainda?) não se concretizou.
Mas o Bandas Desenhadas avançou para os seus próprios prémios. Somos provavelmente os únicos Prémios em que os jurados leem a quase totalidade das obras lançadas, sejam de distribuição comercial (livrarias e pontos de venda de periódicos), sejam de distribuição alternativa. Tal foi sempre uma das minhas grandes preocupações desde que fui convidado pela primeira vez, há quase duas décadas, para ser jurado. Apesar de sermos a equipa nuclear do site, somos obviamente pessoas diferentes, com interesses diferentes e formações diferentes, pelo que as votações para as nomeações e vencedores geram sempre interessantes diálogos.
Nunca serão os prémios da pessoa A ou B. Certamente que todos têm pena de esta ou aquela obra não ter sido nomeada, pela maioria não estar de acordo connosco. Mas orgulhamo-nos do resultado, tendo sempre como diretrizes a imparcialidade, a originalidade temática e dos meios utilizados, a forte exigência narrativa e gráfica e a importância atual da temática. Decidimos também criar as nomeações trimestrais, para as quais contámos com o talento de Daniel Maia e Susana Resende para a antropomorfização das estações do ano a que dizem respeito, como uma forma de promover a BD ao longo de todo o ano e não somente aquando de certames da especialidade.
O site Bandas Desenhadas tem uma secção de Webcomics desde há algum tempo, qual tem sido o feedback?
O primeiro webcomic publicado no site foi em outubro de 2014, num formato ainda muito próximo dos e-zines que tínhamos editado no portal BDesenhada. Com o atual formato, iniciámos a publicação 2 anos mais tarde. Encaramos o facto de sermos o site sobre banda desenhada com mais visitas diárias com grande responsabilidade. E se pudermos ser uma montra de alguma da BD que se produz, entre autores consagrados e autores relativamente inexperientes, então acreditamos que estamos no bom caminho.
Aliás, deixamos a informação de que quem desejar publicar uma BD curta, ou mesmo uma série, só tem de nos fazer chegar a sua proposta. Analisaremos a mesma com toda a atenção. Visto sermos um site sem fins lucrativos, agrada-nos, pelo menos, poder disponibilizar aos interessados um espaço que origina visualizações garantidas. O feedback que temos tem sido muito bom, estando muito orgulhosos do trabalho que temos desenvolvido. Julgo que o melhor feedback que podemos receber é quando autores cujo trabalho muito apreciamos vêm ter connosco com uma proposta de webcomic.
Ou quando autores que não têm nenhum contacto com o meio também recorrem a nós. Sentimo-nos muito contentes quando alguém publica o seu primeiro webcomic no nosso site e, posteriormente, começa a participar em antologias em formato físico ou tem publicações em nome próprio.
Porque surgiu a necessidade de criar a BD2 – Base de Dados de Banda Desenhada?
Esta necessidade surgiu no distante ano de 2006, sendo algo que queríamos implementar em 2007. Desde essa altura, que a criação de uma base de dados da BD que foi editada em Portugal é algo que faz parte das minhas preocupações. Provavelmente, é a minha formação científica a querer que existem bases fiáveis para, a partir daí, poderem ser feitos os mais variados estudos e investigações. Ao longo destes anos, houve avanços e retrocessos com profissionais de diversas áreas, inclusivamente negociações e inícios de trabalhos com bases semelhantes estrangeiras, cujo esqueleto seria utilizado para a portuguesa. Tal nunca chegou a bom porto, pelo que acabámos por avançar com uma versão reduzida do plano inicial, um compromisso entre o que desejávamos e o que é possível. De qualquer modo, o que queremos é que a nossa base de dados vá crescendo, de modo a se poder realmente tornar uma fonte de referência, à semelhança do nosso site.
Seria interessante saber um pouco mais sobre o trabalho de curadoria, moderação em mesas- redondas e porPolio reviews em que o Bandas Desenhadas parAcipou.
A nível de mesas-redondas, moderámos algumas dezenas, incluindo aquelas com autores nacionais e estrangeiros de BD das mais diferentes escolas. As mais recentes tiveram lugar em diferentes edições do Festival Internacional de BD de Beja e da Comic Con Portugal. Quanto à curadoria, trabalhámos no âmbito do Festival Internacional de BD de Beja em 4 exposições de autores italianos, Paolo Mottura (2017), Marco Gervasio (2018), Fabio Celoni (2018) e Enrico Faccini (2019). Ao contrário do que se possa pensar, a vinda destes autores e respetivas exposições resultou de um trabalho conjunto do nosso site com o certame, não tendo nenhum apoio de nenhuma editora. Foi uma forma de expor alguns dos vencedores dos Prémios BD Disney. No caso do Fabio Celoni, a sua exposição foi enquanto autor completo e não somente o seu trabalho para a Disney. As restantes três, foram trabalhos muito diferentes sobre trabalhos na Disney. Tal obrigou-nos a negociar o que expor e como expor com a própria Disney, pelo que podem imaginar burocraticamente quantos meses de trabalho decorreram para cada uma das exposições. Registe-se, ainda, que a Disney italiana não costuma autorizar exposições de originais nem sequer na própria Itália, pelo que os visitantes do festival bejense puderam apreciar originais em condições que muitos fãs de BD Disney adorá-lo-iam fazer, mas, provavelmente, jamais o conseguirão. Tal só foi possível, graças ao contínuo trabalho que o nosso site, em conjunto com o Festival internacional de BD de Beja, desenvolveu com a Disney italiana e a redação da linha Disney italiana nesses 3 anos.
Dado o carinho que temos pelo festival bejense, comprometemo-nos com toda essa energia e empenho. Para 2020, tínhamos planeado o início de um novo ciclo de exposições, não relacionadas com BD infantil nem BD Disney, mas todos sabemos como tal correu... Quanto à portfolio review que organizámos, foi uma ideia do Paulo Monteiro. Convidámos o Davide Catenacci, managing editor da BD Disney italiana, e aliámos a sua vinda com um portfolio review e workshop com autores portugueses. São tudo áreas em que nos interessa participar e que gostaríamos de repetir, bem como noutros formatos, como masterclasses com autores estrangeiros. Acreditamos que são questões muito pouco exploradas no nosso país e gostaríamos muito de vir a providenciar tal aos autores portugueses que gostariam de ter acesso a mais formação de uma forma gratuita, mas especializada e privilegiada. Há veras oportunidades perdidas com diversas vindas de autores ao nosso país.
O site possui também uma secção com informações relativas a cinema, televisão e media. Porquê?
Sempre nos interessou a transmedialização da BD, isto é, a forma como a BD é adaptada a outros meios e vice-versa. A secção de cinema, televisão e media do nosso site dedica-se exclusivamente a este tipo de conteúdo. É algo que tem sido bem aceite pelos nossos utilizadores.
Qual a avaliação ao longo do tempo do panorama do mercado editorial de BD portuguesa?
Ao longo dos últimos 20 anos, muito sucedeu. Abriram-se portas, fecharam-se algumas, abriram-se outras. E será sempre assim. Notamos que, nos últimos anos, existe uma tendência para a diminuição da edição de zines e outras edições de autor, os quais atualmente se concentram nos certames de especialidade, quase desaparecendo na sua ausência. Isto são dados que temos constatado estatisticamente ao longo dos anos e sem relação com a óbvia redução de 2019 para 2020, com o número de lançamentos com distribuição alternativa a diminuir para cerca de metade, perante a ausência de certames da especialidade.
Em parte, isto pode ser explicado por um modo de estar mais profissional. Numa mesa-redonda com Nuno Plati, ele afirmava que qualquer autor de BD acabado de licenciar tem um plano objetivo de como ser publicado em Portugal e no estrangeiro, ao contrário do que acontecia há 20 anos, onde tudo parecia obscuro, demasiado longínquo e fruto do acaso. E tem razão. Todos os autores querem ser lidos e muitos produzem material a pensar disponibilizá-lo neste ou naquele evento, com alguns autores a autoeditar, inclusivamente, algumas publicações para certames estrangeiros nos quais pretendem estar presentes. O zine quase deixou der ser publicado fora de um evento, no imediatismo da criação. Muitos autores relatam que as vendas de edições de autor por correio são praticamente inexistentes, pelo que é um facto que estão muito dependentes da realização de eventos para chegarem aos seus leitores.
Também verificámos tal quando organizámos em conjunto com as editoras um pequeno período de promoção especial dos vencedores dos Prémios Bandas Desenhadas 2019 nas categorias de Melhor Álbum com Distribuição Comercial e Com Distribuição Alternativa, em compras diretas à editora, com envios por correio, em pleno confinamento, a qual gerou fraca adesão. Quanto às editoras que apostam em autores portugueses, se as edições de algumas editoras se tornaram residuais, outras estão a apostar na BD portuguesa, a qual, deste modo, surge no canal livreiro. Por fim, com o desaparecimento de revistas de BD, a BD nos pontos de venda de periódicos – com exceção dos álbuns estrangeiros exclusivos das bancas ou vendidos concomitantemente nas livrarias - resume-se às publicações com alguma BD nas suas páginas, seja em pranchas, seja em tiras, independentemente da naturalidade do autor. Nesse cenário, talvez o cartoon – em especial, o editorial – esteja de melhor saúde.
Projectos futuros para o Site Bandas Desenhadas?
Em 2020, levámos muito a sério algo que todos tomámos por garantido – o estarmos presentes quando o confinamento ditou a antropausa e nos isolou fisicamente. O nosso compromisso para com os nossos visitantes e parceiros foi o de estarmos sempre presentes, com conteúdos novos e relevantes.
Neste ano conturbado, não parámos um único dia, mantendo um mínimo de três publicações diárias no nosso site, atingindo, como é habitual, as mais de 1000 publicações anuais, entre artigos, entrevistas, críticas, webcomics e muito mais. Tal pode parecer um daqueles objetivos minor, mas só com muito empenho se torna possível. Para 2021, mantemos o nosso objetivo de aumentar o nosso número de colaboradores, de forma ocasional ou permanente, seja com a escrita de artigos, seja com webcomics. E gostaríamos de poder avançar com os projetos que ficaram em stand-by devido à pandemia de COVID-19. Perante a incerteza sobre o que nos trará o 2021, contrapomos a nossa força de vontade em prosseguir com o nosso trabalho.
Entrevistador: Sérgio Santos
Futuramente continuarão a ser publicadas entrevistas referentes a várias personalidades de destaque ligadas ao universo da BD.