RESENHA BD
No Longer Human, Junji Ito
06-12-2020
Junji Ito é reconhecido com um dos grandes mestres contemporâneos do mangá de horror. É capaz de profundos mergulhos na iconografia do terror, como bem sabe qualquer leitor que tenha pegado em Gyo, Uzumaki ou Tomie, a minha obra favorita deste mangaká. Ou mesmo nos contos curtos que escreve e desenha para as revistas japonesas, que costumam ser posteriormente coligidos em livros.
É impossível não ficar indiferente ao traço de Ito, pela sua inocência perversa. Um traço perfecionista, dentro dos padrões estéticos do mangá, que depressa passa de uma elegância humanizada para os mais depravados horrores imaginários. Ito é exímio em invocar estéticas de revulsão, fortemente telúricas, onde a carne se molda em visões do inferno. Com bem conhecem os seus leitores.
Ito também não foge a outras visões de terror. Já o sabíamos desde a sua adaptação de Frankenstein, onde o mangá se cruza com a obra clássica de Mary Shelley. Aí, Ito é mais comedido, a elegância do traço é a estética que prevalece, apesar de alguns momentos visualmente mais intensos. Algo que faz sentido, o mangá é uma arte narrativa, e os estilismos só fazem sentido se forem elemento fundamental do contar de histórias.
Em termos visuais, é também este o caminho seguido neste No Longer Human. É um trabalho de fôlego, um longo e pesado volume não episódico em que Ito adapta o romance homónimo de Osamu Desai, considerado um dos grandes romances da ficção japonesa moderna.
É um livro inquietante. Acompanhamos as desventuras de Youzo Oba, um homem que tem tudo para ser bem sucedido. Filho de uma influente família japonesa, com um magnetismo pessoal que conquista as mulheres, e algum talento artístico, Oba poderia ser um grande homem. Mas nunca o conseguirá. Algo na sua personalidade está irremediavelmente danificado. As suas amizades são perniciosas, os seus amores terminam invariavelmente em tragédia e morte. Cai no alcoolismo e adição, nunca consegue fazer descolar o seu talento artístico. A sua vida dissoluta e tendência para se meter em problemas levam ao quase abandono pela sua família, especialmente pelo pai, homem excessivamente rigoroso.
O que falha, em Oba? Essencialmente, aquela máxima sartriana: l'enfer, c'est les autres. O personagem nunca conseguiu perceber os mecanismos do comportamento humano, sendo para sempre incapaz de se relacionar com os outros. É atormentado pela sua fragilidade, pelo terror de que aqueles que o rodeiam descubram a sua verdadeira personalidade. E como tem tendência para atrair problemas, especialmente com mulheres, alguns dos quais com desfechos horríveis, soma aos seus tormentos os profundos remorsos pelo seu passado. E, no entanto, Oba é amado por mulheres que lhe são dedicadas, e apoiado por uma família que se compadece da sua ovelha negra. A queda profunda na adição de ópio irá ditar o seu destino. Recuperar num sanatório, e ser desterrado pela família para longe de Tóquio. Num toque de ironia, leva consigo para o desterro a jovem que foi um dos seus primeiros amores, e um filho. É no sanatório que se encontrará com um jovem escritor, também a recuperar dos seus males da mente, que se inspirará nas desventuras de Oba para criar o romance que o afirmará com escritor.
Junji Ito é reconhecido com um dos grandes mestres contemporâneos do mangá de horror. É capaz de profundos mergulhos na iconografia do terror, como bem sabe qualquer leitor que tenha pegado em Gyo, Uzumaki ou Tomie, a minha obra favorita deste mangaká. Ou mesmo nos contos curtos que escreve e desenha para as revistas japonesas, que costumam ser posteriormente coligidos em livros.
É impossível não ficar indiferente ao traço de Ito, pela sua inocência perversa. Um traço perfecionista, dentro dos padrões estéticos do mangá, que depressa passa de uma elegância humanizada para os mais depravados horrores imaginários. Ito é exímio em invocar estéticas de revulsão, fortemente telúricas, onde a carne se molda em visões do inferno. Com bem conhecem os seus leitores.
Ito também não foge a outras visões de terror. Já o sabíamos desde a sua adaptação de Frankenstein, onde o mangá se cruza com a obra clássica de Mary Shelley. Aí, Ito é mais comedido, a elegância do traço é a estética que prevalece, apesar de alguns momentos visualmente mais intensos. Algo que faz sentido, o mangá é uma arte narrativa, e os estilismos só fazem sentido se forem elemento fundamental do contar de histórias.
Em termos visuais, é também este o caminho seguido neste No Longer Human. É um trabalho de fôlego, um longo e pesado volume não episódico em que Ito adapta o romance homónimo de Osamu Desai, considerado um dos grandes romances da ficção japonesa moderna.
É um livro inquietante. Acompanhamos as desventuras de Youzo Oba, um homem que tem tudo para ser bem sucedido. Filho de uma influente família japonesa, com um magnetismo pessoal que conquista as mulheres, e algum talento artístico, Oba poderia ser um grande homem. Mas nunca o conseguirá. Algo na sua personalidade está irremediavelmente danificado. As suas amizades são perniciosas, os seus amores terminam invariavelmente em tragédia e morte. Cai no alcoolismo e adição, nunca consegue fazer descolar o seu talento artístico. A sua vida dissoluta e tendência para se meter em problemas levam ao quase abandono pela sua família, especialmente pelo pai, homem excessivamente rigoroso.
O que falha, em Oba? Essencialmente, aquela máxima sartriana: l'enfer, c'est les autres. O personagem nunca conseguiu perceber os mecanismos do comportamento humano, sendo para sempre incapaz de se relacionar com os outros. É atormentado pela sua fragilidade, pelo terror de que aqueles que o rodeiam descubram a sua verdadeira personalidade. E como tem tendência para atrair problemas, especialmente com mulheres, alguns dos quais com desfechos horríveis, soma aos seus tormentos os profundos remorsos pelo seu passado. E, no entanto, Oba é amado por mulheres que lhe são dedicadas, e apoiado por uma família que se compadece da sua ovelha negra. A queda profunda na adição de ópio irá ditar o seu destino. Recuperar num sanatório, e ser desterrado pela família para longe de Tóquio. Num toque de ironia, leva consigo para o desterro a jovem que foi um dos seus primeiros amores, e um filho. É no sanatório que se encontrará com um jovem escritor, também a recuperar dos seus males da mente, que se inspirará nas desventuras de Oba para criar o romance que o afirmará com escritor.
Pesquisando um pouco sobre o romance original de Desai, descobre-se que é uma obra com um forte cunho autobiográfico. Percebe-se que o desafortunado Oba é um alter-ego do próprio escritor, e todo o romance uma sublimação dos seus traumas, remorsos e sentimento de desumanidade. Na leitura desta adaptação, senti que estava a ler uma espécie de versão distorcida do Retrato de Dorian Gray de Wilde, uma em que o protagonista e o seu retrato se mesclam. Em parte, suspeito que essa sensação seja culpa do traço limpo e elegante de Ito.
No Longer Human é uma obra de marcado terror psicológico. Náo há espíritos, ou intervenções do sobrenatural. Quando muito, temos sequências alucinatórias ou momentos de violência visual. Adaptar esta obra é um desafio para a capacidade narrativa de Junji Ito. O ritmo é bastante direto, não há o seu habitual crescendo de horror que culmina num final catastrófico. Neste livro, o final é quase bucólico, embora negro.
Os voos gráficos de susto, com a iconografia de horror a que nos habituou, também estão presentes. O mangaká aproveita momentos de tormenta individual do personagem, ou sequências de alucinação, para nos brindar com a sua estética negra, aquele misto de body horror com terror clássico, que para os leitores de Ito é como um vício.
A isso sobrepõe-se uma estética de degradação de inocência, algo que só encontro comparação em Tomie, uma capacidade de Ito em desenhar personagens com uma inocência cativante mas que acabam por se revelar profundamente malévolas. Aqui, é um pouco diferente. Quando os traços visuais de uma personagem apontam para a sua inocência, sabemos que será uma vítima trágica dos desajustes do protagonista do romance. Inversamente, quando nos cruzamos com personagens que são uma má influência, Ito consegue representá-las com discretos traços que as tornam visualmente repelentes.
Em No Longer Human, Junji Ito está firmemente no campo do horror psicológico, do terror que vive no interior do ser humano. Esta adaptação, eficaz, de uma obra sobre a incapacidade de se adaptar à convivência com a humanidade é profundamente inquietante. Ito usa com mestria e equilíbrio a sua estética para nos provocar desconforto, sublinhando o caráter desta história sobre a desumanidade interior.
Artur Coelho
No Longer Human é uma obra de marcado terror psicológico. Náo há espíritos, ou intervenções do sobrenatural. Quando muito, temos sequências alucinatórias ou momentos de violência visual. Adaptar esta obra é um desafio para a capacidade narrativa de Junji Ito. O ritmo é bastante direto, não há o seu habitual crescendo de horror que culmina num final catastrófico. Neste livro, o final é quase bucólico, embora negro.
Os voos gráficos de susto, com a iconografia de horror a que nos habituou, também estão presentes. O mangaká aproveita momentos de tormenta individual do personagem, ou sequências de alucinação, para nos brindar com a sua estética negra, aquele misto de body horror com terror clássico, que para os leitores de Ito é como um vício.
A isso sobrepõe-se uma estética de degradação de inocência, algo que só encontro comparação em Tomie, uma capacidade de Ito em desenhar personagens com uma inocência cativante mas que acabam por se revelar profundamente malévolas. Aqui, é um pouco diferente. Quando os traços visuais de uma personagem apontam para a sua inocência, sabemos que será uma vítima trágica dos desajustes do protagonista do romance. Inversamente, quando nos cruzamos com personagens que são uma má influência, Ito consegue representá-las com discretos traços que as tornam visualmente repelentes.
Em No Longer Human, Junji Ito está firmemente no campo do horror psicológico, do terror que vive no interior do ser humano. Esta adaptação, eficaz, de uma obra sobre a incapacidade de se adaptar à convivência com a humanidade é profundamente inquietante. Ito usa com mestria e equilíbrio a sua estética para nos provocar desconforto, sublinhando o caráter desta história sobre a desumanidade interior.
Artur Coelho
No Longer Human
Autores: Junji Ito, Osamu Desai
Editora: Viz Media
Ano de edição: 2019
Páginas: 616 páginas, capa dura
Preço: 35€