RESENHA BD
Human
19-12-2019
“Human” (2019) é um romance gráfico francês de 138 páginas do argumentista Diego Agrimbau e do banda-desenhista Lucas Varela (ambos nascidos na Argentina). Agrimbau é um autor multi-premiado que tem vindo a criar bedês em vários géneros com vários ilustradores desde a década de 1990. Varela começou a trabalhar exclusivamente na área da banda desenhada em 2006, em 2012 participou numa residência artística em Angoulême onde fez a sua entrada no mercado franco-belga. Antes de apreciar esta obra parece-me pertinente partilhar aqui a pequena sinopse (que traduzi de forma livre) disponibilizada na contracapa do livro e no site Europe Comics (onde pode ser adquirido):
“Planeta Terra: 500,000 anos no futuro. Os seres humanos estão extintos há milénios. Dois cientistas, Robert e June, têm estado em órbita terrestre, em estase, à espera que o planeta se torne habitável. Com a ajuda de uma equipa de robôs, eles planeiam recomeçar do zero: um novo Adão e Eva que não farão os mesmo erros dos seus ancestrais. Mas, primeiro, Robert tem de encontrar June que parece ter aterrado noutro local da vasta selva – o seu Éden – cheia de criaturas grotescas e estranhos primatas...”
Esta narrativa de ficção-científica decorre meio milhão de anos no futuro. Para a compreender melhor e porque o género da FC abarca uma miríade de subgéneros e temas distintos é importante categorizar a estória de acordo com um subgénero apropriado. O filósofo francês Jacques Derrida disse que todos os textos participam em um ou vários géneros, nenhum texto é destituído de género mas, no entanto, isso nunca resulta em pertença. É também importante perceber que o sistema de géneros é uma ferramenta intelectual em constante evolução: novos géneros são criados com frequência para melhor acomodar as muitas narrativas que contamos.
Quando uma estória decorre muito depois de um cataclismo em que as coisas voltaram ao ‘normal’ o subgénero pós-apocalipse não é o termo apropriado. De acordo com a The Encyclopedia of Science Fiction online a expressão correta é ‘ruined earth’. A categoria parece-me inadequada quando aplicada ao romance gráfico “Human”. Depois do personagem Robert se despenhar na selva não é um cenário de ‘Terra ruinosa’ que observamos mas antes um novo ‘Éden’, um planeta saudável desprovido de humanos e tecnologia. O Antropoceno como o conhecemos terminou. O subgénero mais apropriado, na minha perspetiva, é o relativamente novo pós-pós-apocalipse (não é uma gralha) pois a narrativa não se debruça sobre o rescaldo de uma grande catástrofe em que uns poucos sobreviventes tentam manter-se vivos, o enredo tem lugar num futuro distante, muito depois da extinção do Homo sapiens, num planeta que encontrou o seu equilíbrio. Existem ainda alguns resquícios tecnológicos do passado, um lembrete do poder destrutivo e arrogância do Homem. Para quem ainda não leu o livro aviso que daqui para a frente o texto irá conter ‘spoilers’ por isso recomendo que o leiam primeiro e depois terminem esta resenha.
“Human” (2019) é um romance gráfico francês de 138 páginas do argumentista Diego Agrimbau e do banda-desenhista Lucas Varela (ambos nascidos na Argentina). Agrimbau é um autor multi-premiado que tem vindo a criar bedês em vários géneros com vários ilustradores desde a década de 1990. Varela começou a trabalhar exclusivamente na área da banda desenhada em 2006, em 2012 participou numa residência artística em Angoulême onde fez a sua entrada no mercado franco-belga. Antes de apreciar esta obra parece-me pertinente partilhar aqui a pequena sinopse (que traduzi de forma livre) disponibilizada na contracapa do livro e no site Europe Comics (onde pode ser adquirido):
“Planeta Terra: 500,000 anos no futuro. Os seres humanos estão extintos há milénios. Dois cientistas, Robert e June, têm estado em órbita terrestre, em estase, à espera que o planeta se torne habitável. Com a ajuda de uma equipa de robôs, eles planeiam recomeçar do zero: um novo Adão e Eva que não farão os mesmo erros dos seus ancestrais. Mas, primeiro, Robert tem de encontrar June que parece ter aterrado noutro local da vasta selva – o seu Éden – cheia de criaturas grotescas e estranhos primatas...”
Esta narrativa de ficção-científica decorre meio milhão de anos no futuro. Para a compreender melhor e porque o género da FC abarca uma miríade de subgéneros e temas distintos é importante categorizar a estória de acordo com um subgénero apropriado. O filósofo francês Jacques Derrida disse que todos os textos participam em um ou vários géneros, nenhum texto é destituído de género mas, no entanto, isso nunca resulta em pertença. É também importante perceber que o sistema de géneros é uma ferramenta intelectual em constante evolução: novos géneros são criados com frequência para melhor acomodar as muitas narrativas que contamos.
Quando uma estória decorre muito depois de um cataclismo em que as coisas voltaram ao ‘normal’ o subgénero pós-apocalipse não é o termo apropriado. De acordo com a The Encyclopedia of Science Fiction online a expressão correta é ‘ruined earth’. A categoria parece-me inadequada quando aplicada ao romance gráfico “Human”. Depois do personagem Robert se despenhar na selva não é um cenário de ‘Terra ruinosa’ que observamos mas antes um novo ‘Éden’, um planeta saudável desprovido de humanos e tecnologia. O Antropoceno como o conhecemos terminou. O subgénero mais apropriado, na minha perspetiva, é o relativamente novo pós-pós-apocalipse (não é uma gralha) pois a narrativa não se debruça sobre o rescaldo de uma grande catástrofe em que uns poucos sobreviventes tentam manter-se vivos, o enredo tem lugar num futuro distante, muito depois da extinção do Homo sapiens, num planeta que encontrou o seu equilíbrio. Existem ainda alguns resquícios tecnológicos do passado, um lembrete do poder destrutivo e arrogância do Homem. Para quem ainda não leu o livro aviso que daqui para a frente o texto irá conter ‘spoilers’ por isso recomendo que o leiam primeiro e depois terminem esta resenha.
O nosso planeta já foi habitado por várias espécies humanas que partilharam ecossistemas e se miscigenaram em alguns casos. Neste livro existem várias espécies humanas que vivem na selva. O Homem não se extinguiu, ele evoluiu e adaptou-se. Antes da chegada de Robert, a sua mulher June catalogou várias espécies dentro do género Homo: Homo aereous, Homo hydronensis, Homo terribilus, Homo cavernalis, Homo arborens e Homo minimus. June despenha-se 104 anos antes de Robert devido a um problema técnico e, depois de uns anos, apercebe-se de que a missão de reintroduzir o Homo sapiens é um erro. Ela tenta evitar que Robert acorde do seu crio-sono mas, sabendo que ele inevitavelmente irá ‘desprender-se’ na nave-mãe e aterrar no planeta Terra, ela deixa-lhe um conjunto de vídeos com as suas descobertas e a sua convicção de que o Projeto Fénix não deve ser levado a cabo. Os pós-humanos catalogados parecem ter ‘regredido’ para um estado mais animalístico mas, por outro lado, um estado evolutivo mais de acordo com a ordem natural das coisas, mais em sintonia com a Natureza.
Outro subgénero da FC (pouco divulgado) pode ser aqui mencionado: evolução especulativa. Este subgénero é conhecido, principalmente, pelos livros ilustrados do autor Dougal Dixon mas a referência mais famosa é o clássico “The Time Machine” (1895), de H. G. Wells. Este romance conta a estória de um cientista que viaja para o futuro e descobre que a Humanidade se dividiu em duas espécies distintas. A bedê “Human” pode ser pensada através deste subgénero mas, como Derrida disse, tal participação não resulta em pertença pois nenhuma estória pertence exclusivamente a um único género.
Na monografia “Posthumanism and the Graphic Novel in Latin America” (2017), os autores Edward King e Joanna Page referem-se a outras duas obras de Diego Agrimbau como fábulas antihumanistas com visões distópicas sobre as consequências da exploração ambiental e a escravatura do progresso. Em “Human” parece-me óbvio que quando Robert perde o seu objetivo inicial de reintroduzir e ‘salvar’ o Homo sapiens este começa imediatamente a destruir o Ambiente. Torna-se um rei déspota que começa por deitar abaixo uma data de árvores para construir uma paliçada (um muro) e separar-se da Natureza, depois implementa biopolíticas repressivas de ‘domínio’ sobre os úteros dos outros hominídeos com o objetivo de criar uma nova raça. O seu complexo de superioridade levam-no a cometer várias atrocidades que não se coadunam com o seu objetivo inicial. A morte da sua mulher e a sua incapacidade para lidar com a nova realidade levam-no para a perdição e para a imoralidade.
Para impor a sua visão ele ordena o uso dos cadáveres de alguns Homo cavernalis para criar um conjunto de ciborgues-zombies que farão parte do seu exército. Este arquétipo Frankensteiniano ou zombificação do corpo pós-humano do Homo cavernalis é um claro sinal do quanto Robert se afastou do plano inicial. No livro “Zombies in Western Culture: A Twenty-First Century Crisis” (2017), de John Vervaeke, Christopher Mastropietro e Filip Miscevic é afirmado que o zombie é o ‘zeitgeist’ do monstro no século XXI. Este representa todas as qualidades humanas em falta que nos fazem humanos. É a metáfora perfeita para a alienação contemporânea, ansiedade, consumismo e privação de direitos de certas minorias nas nações Ocidentais. Não admira que Agrimbau tenha optado por incluir um exército de mortos-vivos controlado por um rei fora do seu tempo no seu romance gráfico. Esta opção levou-me a pensar noutra obra que faz o mesmo: George R. R. Martin tem o seu Rei da Noite que comanda, em conjunto com os Caminhantes Brancos, um exército de cadáveres animados através de poderes mágicos que invadem o ‘mundo’ do Homem.
A monstrificação ou zombificação dos cadáveres a mando de Robert e a criação de um gladiador robótico para os seus ‘jogos de guerra’ demonstram a sua dependência em relação ao progresso e à tecnologia. A sua mente científica interfere com a sua habilidade de poder viver um vida simples em conformidade com a natureza que o rodeia. O filósofo alemão Walter Benjamin, no seu texto “To the Planetarium” (1928) diz que a tecnologia não deve permitir a subjugação da natureza pelo Homem mas sim o controlo da relação entre a Humanidade e a Natureza. Robert opta pela primeira.
Felizmente, as suas vítimas, três mulheres (Homo arborens) que Robert engravida, são a razão da sua ‘queda’. Depois de ajudadas pela robô Alpha, uma das vozes da razão e opositora das ações deploráveis de Robert, as três mulheres terminam o seu reinado atirando-o de uma cascata. Depois disso, Alpha toma a decisão de abandonar a selva com as mulheres grávidas com o objetivo de encontrar um local mais propício para criar os filhos de Robert. O livro termina com um painel em que observamos outra cápsula caindo do céu indicando que outro Homo sapiens está prestes a aterrar na superfície do planeta. A estória termina mas parece-me que há espaço para pelo menos mais um volume. Espero que os autores regressem a este ‘storyworld’ tão rico.
Este romance gráfico foi feito para um público jovem apesar dos temas violentos e complexos (mais adultos) que trata e essa opção é ‘visível’ em alguns diálogos e opções narrativas. Não retira o mérito da estória que trata esses temas com destreza. A arte é muito interessante e a paleta de cores quase não usa tons de verde e azul resultando num planeta Terra alienígena. A falta de um céu azul e árvores com copas verdes tornam a selva um espaço de alteridade. Os desenhos são reminiscentes da linha clara de Hergé misturados com o estilo mais gráfico de Mike Mignola. Resumindo, este livro é especialmente interessante para fãs de ficção-científica que apreciam narrativas especulativas sobre o futuro da humanidade e ficção pós-humana.
Marco Fraga Silva
A monstrificação ou zombificação dos cadáveres a mando de Robert e a criação de um gladiador robótico para os seus ‘jogos de guerra’ demonstram a sua dependência em relação ao progresso e à tecnologia. A sua mente científica interfere com a sua habilidade de poder viver um vida simples em conformidade com a natureza que o rodeia. O filósofo alemão Walter Benjamin, no seu texto “To the Planetarium” (1928) diz que a tecnologia não deve permitir a subjugação da natureza pelo Homem mas sim o controlo da relação entre a Humanidade e a Natureza. Robert opta pela primeira.
Felizmente, as suas vítimas, três mulheres (Homo arborens) que Robert engravida, são a razão da sua ‘queda’. Depois de ajudadas pela robô Alpha, uma das vozes da razão e opositora das ações deploráveis de Robert, as três mulheres terminam o seu reinado atirando-o de uma cascata. Depois disso, Alpha toma a decisão de abandonar a selva com as mulheres grávidas com o objetivo de encontrar um local mais propício para criar os filhos de Robert. O livro termina com um painel em que observamos outra cápsula caindo do céu indicando que outro Homo sapiens está prestes a aterrar na superfície do planeta. A estória termina mas parece-me que há espaço para pelo menos mais um volume. Espero que os autores regressem a este ‘storyworld’ tão rico.
Este romance gráfico foi feito para um público jovem apesar dos temas violentos e complexos (mais adultos) que trata e essa opção é ‘visível’ em alguns diálogos e opções narrativas. Não retira o mérito da estória que trata esses temas com destreza. A arte é muito interessante e a paleta de cores quase não usa tons de verde e azul resultando num planeta Terra alienígena. A falta de um céu azul e árvores com copas verdes tornam a selva um espaço de alteridade. Os desenhos são reminiscentes da linha clara de Hergé misturados com o estilo mais gráfico de Mike Mignola. Resumindo, este livro é especialmente interessante para fãs de ficção-científica que apreciam narrativas especulativas sobre o futuro da humanidade e ficção pós-humana.
Marco Fraga Silva
Human
Argumento: Diego Agrimbau
Ilustração: Lucas Varela
Publicação: Europe Comics