RESENHA BD
Espíritos dos Mortos de Edgar Allan Poe, por Richard Corben
10-04-2021
Quando um trabalho de um escritor é adaptado a outros media, muito pode acontecer. Algumas adaptações apenas voltam a contar a mesma histórias noutros suportes. Estas, se forem bem desenhadas por ilustradores cujo estilo se adapte ao original, até podem ser marcantes - no caso de Poe, há um longo historial de bastantes ilustradores clássicos que souberam tratar muito bem as palavras do escritor sem fugir muito à sua linha. Outras, abastardam os originais com adaptações delicodoces ou excessivamente simplistas. Diga-se que no mundo do cinema, abundam este tipo de destruição de obras, mas os comics não são exceção..
Quando é um grande mestre da banda desenhada a pegar na obra de um mestre da literatura, coisas interessantes acontecem. Os textos originais deixam de ser conclusões e tornam-se pontos de partida. O resultado vai mais longe do que uma adaptação linear iria, uma vez que é um artista com estética própria a interpretar a obra de outro. Como na música, a forma como se interpreta pode dar novas formas à obra original. É o que encontramos nestas adaptações de poemas e contos de Edgar Allan Poe por Richard Corben.
Corben, que infelizmente nos deixou recentemente, é um dos nomes importantes e influentes da banda desenhada americana. Não da comercial. O seu estilo gráfico dificilmente se adaptaria aos espartilhos estéticos dos comics comerciais (se bem que é divertido imaginar uma banal série de super-heróis desenhada por Corben). Este ilustrador ganhou a sua fama entre os comics de fantasia e os independentes, onde o seu estilo podia encontrar textos e leitores capazes de o perceber.
Quando um trabalho de um escritor é adaptado a outros media, muito pode acontecer. Algumas adaptações apenas voltam a contar a mesma histórias noutros suportes. Estas, se forem bem desenhadas por ilustradores cujo estilo se adapte ao original, até podem ser marcantes - no caso de Poe, há um longo historial de bastantes ilustradores clássicos que souberam tratar muito bem as palavras do escritor sem fugir muito à sua linha. Outras, abastardam os originais com adaptações delicodoces ou excessivamente simplistas. Diga-se que no mundo do cinema, abundam este tipo de destruição de obras, mas os comics não são exceção..
Quando é um grande mestre da banda desenhada a pegar na obra de um mestre da literatura, coisas interessantes acontecem. Os textos originais deixam de ser conclusões e tornam-se pontos de partida. O resultado vai mais longe do que uma adaptação linear iria, uma vez que é um artista com estética própria a interpretar a obra de outro. Como na música, a forma como se interpreta pode dar novas formas à obra original. É o que encontramos nestas adaptações de poemas e contos de Edgar Allan Poe por Richard Corben.
Corben, que infelizmente nos deixou recentemente, é um dos nomes importantes e influentes da banda desenhada americana. Não da comercial. O seu estilo gráfico dificilmente se adaptaria aos espartilhos estéticos dos comics comerciais (se bem que é divertido imaginar uma banal série de super-heróis desenhada por Corben). Este ilustrador ganhou a sua fama entre os comics de fantasia e os independentes, onde o seu estilo podia encontrar textos e leitores capazes de o perceber.
Confesso que, pessoalmente, sempre tive uma relação assimétrica com o estilo gráfico de Corben. Descobri-o nas páginas da defunta e clássica revista francesa USA Comics, que trazia para os leitores franceses os autores americanos. Foi aí que descobri Corben e o seu épico de fantasia Den, os Kubert (sempre achei o filho seguidor incontornável do pai na estética), Mark Chiarello, Arthur Suydam ou o fantástico Xenozoic Era de Mark Schultz. Autores que mostraram que a banda desenhada americana era muito mais do que a banalidade divertida dos comics de super-hérois ou às pretensões artísticas dos independentes contra-culturais.
Corben sempre me deixou uma impressão estranha na leitura. Visualmente intrigante, mas incómodo na sua relação com a carnalidade disforme. No traço de Corben, a figura humana é argila para ser modelada, e as suas figuras representam um ideal de beleza muito pessoal, onde a deformação ganha uma beleza algo distante do ideal classicista que herdámos da tradição greco-romana.
Aplicada ao terror, a estética de Corben assenta como uma luva. Deformações repelentes que exercem atração mórbida são a essência de um género que nos estimula a não desviar o olhar daquilo que sabemos que nos irá chocar, assustar e horrorizar. Isso é especialmente patente nas suas adaptações da obra de Poe, que ganham dimensões de repelência visual que vão muito além da estética de decadência vitoriana, algo alimentada por visões opiáceas, do fin de siécle de Poe.
Poe tem sido um autor adaptado até à exaustão, e isso leva-nos a esperar certas estéticas quando um desenhador pega nas suas histórias. Esperamos estilismos decadentes vitorianos, com traços grand guignol trazido pela estética das adaptações cinematográficas dos estúdios Hammer ou de Roger Corman. Não é esse o caminho seguido por Corben, embora grand guignol não lhe falte.
Corben, como grande mestre que foi, adapta e recria os contos e poemas de Poe com o seu estilo gráfico muito pessoal. As adaptações não são lineares, antes, são variações que exploram possibilidades abertas por Poe. Sendo contos de terror, têm o seu quê de pulp, e Corben faz grandes acenos à estética clássica dos títulos mais influentes das revistas de horror americanas. A começar por usar um personagem constante como anfitrião, cheio de ironia negra, que nos apresenta e ironiza com moralismo sobre as desventuras a que iremos assistir, e chegado o final, aparece para fechar a cortina. é decalcado diretamente da estética Creepy e Eerie, bem como o barroquismo tenebroso da estética do terror clássico.
Em termos narrativos, Corben altera, por vezes de forma subtil, outras, nem por isso, as histórias originais de Poe. Ao fazê-lo, dá-lhes outras dimensões. As visões de Corben sobre Poe não sao adaptações lineares. São uma interpretação, uma busca por novas vertentes para textos clássicos. A estética de exagero do horror dá a estas histórias um caráter tenebroso e irónico, entre o visual e a recriação do texto, e com isso Corben aprofunda a loucura e horror grotesco dos originais. Este livro não é uma adaptação linear de contos clássicos, mas sim o espírito da obra de Poe levada aos extremos lógicos das suas linhas narrativas.
Suspeito que este livro não seja do agrado do público em geral. A sua carga referencial é enorme. Tem de se ser conhecedor do gótico fin de siècle que apaixonou os simbolistas franceses que, de facto, foram os que colocaram Poe no pedestal literário que nunca teve em vida. Tem de se apreciar o traço de Corben, ou pelo menos capacidade para reconhecer a sua qualidade estética mesmo que o traço não nos agrade. Faz ainda jeito conhecer o historial exploitation das estéticas do horror no cinema dos anos 50 e 60, e especialmente nas páginas das lendárias revistas da Warren Publishing, que fugiam aos espartilhos da Comics Code Authority e compraziam os seus leitores com histórias tenebrosas ilustradas por grandes desenhadores, capazes de invocar o horror e o exotismo nas suas pranchas. Um grupo restrito, do qual Corben fez parte. Esta edição de Espíritos dos Mortos funciona como uma excelente elegia ao seu criador, merecendo espaço nas bibliotecas.
Artur Coelho
Corben sempre me deixou uma impressão estranha na leitura. Visualmente intrigante, mas incómodo na sua relação com a carnalidade disforme. No traço de Corben, a figura humana é argila para ser modelada, e as suas figuras representam um ideal de beleza muito pessoal, onde a deformação ganha uma beleza algo distante do ideal classicista que herdámos da tradição greco-romana.
Aplicada ao terror, a estética de Corben assenta como uma luva. Deformações repelentes que exercem atração mórbida são a essência de um género que nos estimula a não desviar o olhar daquilo que sabemos que nos irá chocar, assustar e horrorizar. Isso é especialmente patente nas suas adaptações da obra de Poe, que ganham dimensões de repelência visual que vão muito além da estética de decadência vitoriana, algo alimentada por visões opiáceas, do fin de siécle de Poe.
Poe tem sido um autor adaptado até à exaustão, e isso leva-nos a esperar certas estéticas quando um desenhador pega nas suas histórias. Esperamos estilismos decadentes vitorianos, com traços grand guignol trazido pela estética das adaptações cinematográficas dos estúdios Hammer ou de Roger Corman. Não é esse o caminho seguido por Corben, embora grand guignol não lhe falte.
Corben, como grande mestre que foi, adapta e recria os contos e poemas de Poe com o seu estilo gráfico muito pessoal. As adaptações não são lineares, antes, são variações que exploram possibilidades abertas por Poe. Sendo contos de terror, têm o seu quê de pulp, e Corben faz grandes acenos à estética clássica dos títulos mais influentes das revistas de horror americanas. A começar por usar um personagem constante como anfitrião, cheio de ironia negra, que nos apresenta e ironiza com moralismo sobre as desventuras a que iremos assistir, e chegado o final, aparece para fechar a cortina. é decalcado diretamente da estética Creepy e Eerie, bem como o barroquismo tenebroso da estética do terror clássico.
Em termos narrativos, Corben altera, por vezes de forma subtil, outras, nem por isso, as histórias originais de Poe. Ao fazê-lo, dá-lhes outras dimensões. As visões de Corben sobre Poe não sao adaptações lineares. São uma interpretação, uma busca por novas vertentes para textos clássicos. A estética de exagero do horror dá a estas histórias um caráter tenebroso e irónico, entre o visual e a recriação do texto, e com isso Corben aprofunda a loucura e horror grotesco dos originais. Este livro não é uma adaptação linear de contos clássicos, mas sim o espírito da obra de Poe levada aos extremos lógicos das suas linhas narrativas.
Suspeito que este livro não seja do agrado do público em geral. A sua carga referencial é enorme. Tem de se ser conhecedor do gótico fin de siècle que apaixonou os simbolistas franceses que, de facto, foram os que colocaram Poe no pedestal literário que nunca teve em vida. Tem de se apreciar o traço de Corben, ou pelo menos capacidade para reconhecer a sua qualidade estética mesmo que o traço não nos agrade. Faz ainda jeito conhecer o historial exploitation das estéticas do horror no cinema dos anos 50 e 60, e especialmente nas páginas das lendárias revistas da Warren Publishing, que fugiam aos espartilhos da Comics Code Authority e compraziam os seus leitores com histórias tenebrosas ilustradas por grandes desenhadores, capazes de invocar o horror e o exotismo nas suas pranchas. Um grupo restrito, do qual Corben fez parte. Esta edição de Espíritos dos Mortos funciona como uma excelente elegia ao seu criador, merecendo espaço nas bibliotecas.
Artur Coelho
Espíritos dos Mortos
Autor: Richard Corben
Editora: G.floy
Ano de edição: 2021
Páginas: 224 páginas, capa dura
Preço: 25€