ENTREVISTA EXCLUSIVA COM FÁBIO VERAS
15-12-2021
Fábio sentiu uma ligação instantânea com a BD quando, em criança, sentado num recanto da papelaria perto de casa, lia os comics americanos que deixava depois no mesmo sítio. 2018 foi decisivo na vida deste licenciado em Belas Artes: venceu o concurso de BD de Odemira (repetindo o feito de dois anos antes na Amadora) e lançou o seu primeiro álbum de banda desenhada a solo, O Jardim dos Espectros (Escorpião Azul). Mantém as influências de autores cujos principais trabalhos surgiram na viragem dos anos 1980 para 90: gente oriunda da pintura que levou um estilo muito próprio para o universo dos super-heróis. Kent Williams, John J Muth, George Pratt e Bill Sienkiewicz.” – Texto de Ricardo Gross, publicado na Agenda Cultural de Lisboa, Outubro de 2021.
+info: https://www.instagram.com/fabioveraz/
Fábio sentiu uma ligação instantânea com a BD quando, em criança, sentado num recanto da papelaria perto de casa, lia os comics americanos que deixava depois no mesmo sítio. 2018 foi decisivo na vida deste licenciado em Belas Artes: venceu o concurso de BD de Odemira (repetindo o feito de dois anos antes na Amadora) e lançou o seu primeiro álbum de banda desenhada a solo, O Jardim dos Espectros (Escorpião Azul). Mantém as influências de autores cujos principais trabalhos surgiram na viragem dos anos 1980 para 90: gente oriunda da pintura que levou um estilo muito próprio para o universo dos super-heróis. Kent Williams, John J Muth, George Pratt e Bill Sienkiewicz.” – Texto de Ricardo Gross, publicado na Agenda Cultural de Lisboa, Outubro de 2021.
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ENTREVISTA
Começaste a ler comics americanos na livraria perto da tua casa. Recordas-te dos primeiros livros que leste? Qual foi o primeiro que compraste?
O primeiro frente-a-frente com a banda desenhada deu-se ligeiramente mais cedo, com um livro do Tio Patinhas, que ainda hoje tenho guardado. Mas foi, sobretudo, uma revista dos X-Men da Panini que despertou o meu interesse pela BD. Na altura não era costume pedir que mas comprassem, lia até onde podia. Era o tempo de o meu pai acabar o jornal. No dia seguinte voltava para concluir a história e começar outra. Esta foi uma das revistas (e talvez a primeira) que levei para casa. Lembro-me de copiar os desenhos em papel vegetal, depois desenhá-los sem referência, comparar os resultados, e repetir o processo. Este foi, sem dúvida, o ponto de partida para o vínculo que se veio a desenvolver ao longo dos anos.
Tens formação em Belas-Artes. Como e quando é que descobres que a banda desenhada seria o medium ideal para te expressares? Porquê a banda desenhada e não outro meio artístico para comunicares e contares estórias?
Esta descoberta foi algo prematura. Decidi ser banda desenhista entre os 12 e os 13 anos de idade. Mas por muito tempo limitei-me a ler, talvez por receio de vir a descobrir que não seria bom o suficiente. Nos tempos de faculdade sempre fui receptivo a outras formas de expressão. Nunca fui cego pela banda desenhada. A minha paixão é o desenho. Mas não resisto a contar histórias e, até à data, não encontrei nenhum meio tão completo como este. Enquanto escrevo, apercebo-me que a banda desenhada é, afinal, um híbrido, uma arte mestiça, um cruzamento de várias formas de expressão. Isto encanta-me cada vez mais.
Aprecias usar linguagens diferentes nas narrativas gráficas que desenvolves. Essa necessidade de usar diferentes linguagens tem a ver com a tua formação nas Belas-Artes ou estás à procura de um estilo próprio?
Ambas as opções são certeiras. Ensinaram-me a fugir da zona de conforto, enfrentar as minhas dúvidas e errar. Vejo beleza nisso. Mas também não sei o que é ter um estilo próprio, se é algo voluntário ou se sai com naturalidade. Também me pergunto o porquê de o ter. Quando olho para Wolverine: Netsuke ou Alack Sinner imagino o quão bom seria saltar de uma expressão para a outra em menos de nada. Não quero passar a ideia de que nunca terei um estilo próprio. Há claros prejuízos nesta decisão. Mas para já não é algo que me preocupa.
Venceste o concurso de BD de Amadora em 2016 e o de Odemira em 2018. Em 2019 venceste o Prémio Revelação em Amadora. Como vês agora essas conquistas e quão importantes foram as primeiras para a tua decisão em trabalhar na área da BD?
Não contribuíram diretamente para que escolhesse trabalhar na área. Por esta altura, já estava mais que decidido. Serviram antes como motivação para continuar. É sempre bom ser reconhecido pelo que mais gostamos de fazer. O Prémio Revelação teve um sabor especial. O álbum Filhos do Rato não venceu nenhuma das nomeações nesse ano, mas valeu-me esta distinção. Foi também o primeiro prémio que recebi em virtude de uma obra publicada.
Em 2016 colaboraste na primeira Mostra Internacional de Fanzines CoopAzine em Paio Pires e, em 2017, nas edições n.º 5 e nº 6 da revista de BD de ficção especulativa H-alt. Como foram essas experiências em termos da tua formação pessoal e profissional?
Sempre vi estas participações como uma oportunidade para a experimentação. Há algo de particularmente especial em histórias curtas. Requerem uma enorme capacidade de economizar palavras. É como se tivéssemos avistado algo maravilhoso e nos dessem apenas alguns minutos para o descrever. No meu caso, as curtas não só me possibilitaram a exploração livre de ideias como me ajudaram a familiarizar com a nona arte.
Como decorreu o teu processo criativo para a construção do teu primeiro álbum? Quais foram as principais referências (em qualquer media) para esta narrativa?
Não me lembro ao certo em que obras me baseei diretamente, se as houve. O Jardim dos Espectros foi uma tentativa de materializar ideias impressas na minha memória. Foi, portanto, um projeto muito pessoal e espontâneo. Um caos, para ser preciso. Escrevi várias versões da mesma história, colei cenas umas às outras, troquei-lhes o sentido – fazia lembrar as vinhetas de uma prancha de banda desenhada. O prazo, deliberadamente curto, serviu o propósito de manter alguma frescura e despretensão no surgimento de ideias. Na parte gráfica contei com algumas referências (desta vez mais palpáveis) recém-descobertas ou revisitadas, como Manu Larcenet, Jillian Tamaki ou Terkel Risbjerg.
Para o teu segundo álbum, Os Filhos do Rato, publicado em 2019, contaste com a colaboração do argumentista Luís Zhang. Quem convidou quem? E como foi o teu processo de trabalho neste álbum cuja narrativa foi desenvolvida por outra pessoa?
Entrámos em contacto por intermédio da Joana Mosi. O Zhang procurava um ilustrador e eu estava disponível. Começámos a trabalhar, inclusive, antes do Jardim dos Espectros, apesar deste último ter sido o primeiro a ser publicado. Foi um projeto que, para além de exigir de mim outro tipo de organização, também exigiu bastante pesquisa, visto tratar-se de um episódio na Guerra do Ultramar. Era fundamental acertar os uniformes, armamento, e outros pormenores visuais. Reuníamo-nos pelo menos um dia por semana, ora pessoalmente ora via skype, para debatermos sobre as pranchas já finalizadas. Foi um processo lento, visto que ainda estudava, mas a experiência de ver dois anos e meio de trabalho finalmente impressos, amortiza o esforço e sacrifício inerentes à sua produção.
O teu terceiro álbum, O Homem de Lugar Nenhum, Vol. 1, com argumento de Tiago Barros, saiu recentemente. Como foi trabalhar com o Tiago Barros que se estreia aqui em formato álbum e como tem sido a receção da parte do público?
Temos gostos muito semelhantes. Penso que foram poucas as vezes em que as nossas ideias divergiram. Não podia estar mais satisfeito com a forma como desenvolvemos este projeto e acredito que isso é transmitido a quem o lê. A recepção tem sido, num aspeto geral, bastante positiva. Vejo muito entusiasmo e expectativa para o 2º volume, o que, se por um lado me inquieta, por outro, mostra que criámos algo de especial.
Este será o primeiro de dois volumes. Como surgiu a ideia de dividir a narrativa em dois tomos? E quando sairá o próximo?
Esperávamos lançar um volume único, mas o argumento era demasiado longo para caber em 120 páginas, que é a extensão do primeiro volume. Receámos que um álbum com mais do dobro das páginas afastasse o leitor. A prioridade agora é lançar o 2º volume. É difícil falar em datas, mas sem dúvida que o nosso foco é ter o projeto acabado o mais breve possível, quem sabe, mais breve do que se pensa.
As tuas composições gráficas são por vezes cinematográficas. Gostarias de ver uma adaptação para cinema ou série televisiva de algum dos álbuns nos quais trabalhaste até agora? Faz parte dos teus objetivos adaptar banda desenhada para o audiovisual ou criar conteúdos para cinema ou TV?
O cinema sempre foi uma forte inspiração. Na verdade, tenho por hábito visualizar a história que estou a desenvolver como se de um filme se tratasse. Para além de ser profundamente satisfatória, é uma estratégia que se tem mostrado valiosa na concepção das pranchas. Nunca pensei na possibilidade de ver uma adaptação de um dos meus álbuns, mas seria, sem dúvida, uma experiência como poucas.
Não me lembro ao certo em que obras me baseei diretamente, se as houve. O Jardim dos Espectros foi uma tentativa de materializar ideias impressas na minha memória. Foi, portanto, um projeto muito pessoal e espontâneo. Um caos, para ser preciso. Escrevi várias versões da mesma história, colei cenas umas às outras, troquei-lhes o sentido – fazia lembrar as vinhetas de uma prancha de banda desenhada. O prazo, deliberadamente curto, serviu o propósito de manter alguma frescura e despretensão no surgimento de ideias. Na parte gráfica contei com algumas referências (desta vez mais palpáveis) recém-descobertas ou revisitadas, como Manu Larcenet, Jillian Tamaki ou Terkel Risbjerg.
Para o teu segundo álbum, Os Filhos do Rato, publicado em 2019, contaste com a colaboração do argumentista Luís Zhang. Quem convidou quem? E como foi o teu processo de trabalho neste álbum cuja narrativa foi desenvolvida por outra pessoa?
Entrámos em contacto por intermédio da Joana Mosi. O Zhang procurava um ilustrador e eu estava disponível. Começámos a trabalhar, inclusive, antes do Jardim dos Espectros, apesar deste último ter sido o primeiro a ser publicado. Foi um projeto que, para além de exigir de mim outro tipo de organização, também exigiu bastante pesquisa, visto tratar-se de um episódio na Guerra do Ultramar. Era fundamental acertar os uniformes, armamento, e outros pormenores visuais. Reuníamo-nos pelo menos um dia por semana, ora pessoalmente ora via skype, para debatermos sobre as pranchas já finalizadas. Foi um processo lento, visto que ainda estudava, mas a experiência de ver dois anos e meio de trabalho finalmente impressos, amortiza o esforço e sacrifício inerentes à sua produção.
O teu terceiro álbum, O Homem de Lugar Nenhum, Vol. 1, com argumento de Tiago Barros, saiu recentemente. Como foi trabalhar com o Tiago Barros que se estreia aqui em formato álbum e como tem sido a receção da parte do público?
Temos gostos muito semelhantes. Penso que foram poucas as vezes em que as nossas ideias divergiram. Não podia estar mais satisfeito com a forma como desenvolvemos este projeto e acredito que isso é transmitido a quem o lê. A recepção tem sido, num aspeto geral, bastante positiva. Vejo muito entusiasmo e expectativa para o 2º volume, o que, se por um lado me inquieta, por outro, mostra que criámos algo de especial.
Este será o primeiro de dois volumes. Como surgiu a ideia de dividir a narrativa em dois tomos? E quando sairá o próximo?
Esperávamos lançar um volume único, mas o argumento era demasiado longo para caber em 120 páginas, que é a extensão do primeiro volume. Receámos que um álbum com mais do dobro das páginas afastasse o leitor. A prioridade agora é lançar o 2º volume. É difícil falar em datas, mas sem dúvida que o nosso foco é ter o projeto acabado o mais breve possível, quem sabe, mais breve do que se pensa.
As tuas composições gráficas são por vezes cinematográficas. Gostarias de ver uma adaptação para cinema ou série televisiva de algum dos álbuns nos quais trabalhaste até agora? Faz parte dos teus objetivos adaptar banda desenhada para o audiovisual ou criar conteúdos para cinema ou TV?
O cinema sempre foi uma forte inspiração. Na verdade, tenho por hábito visualizar a história que estou a desenvolver como se de um filme se tratasse. Para além de ser profundamente satisfatória, é uma estratégia que se tem mostrado valiosa na concepção das pranchas. Nunca pensei na possibilidade de ver uma adaptação de um dos meus álbuns, mas seria, sem dúvida, uma experiência como poucas.
Em termos técnicos, que estratégias usas para pensares, rascunhares e desenhares as pranchas? Usas mais processos digitais ou tens alguma fase analógica? Em relação à escrita, como desenvolves as tuas ideias? Escreves guiões ou partes logo para o storyboard?
O método de estruturação das pranchas pode variar consoante o projeto. Começo, grosso modo, por rabiscar ideias. Umas vezes acerto à primeira, outras levo mais tempo. A complexidade do guião ou argumento pesa sobre as minhas decisões. Costumo ter comigo uma biblioteca de referências, seja fotografia ou ilustração. É o que mais alimenta a minha criatividade. Normalmente defino o formato e a posição das vinhetas, e mais tarde o conteúdo de cada uma. Por vezes faço tudo junto. Finda esta etapa, sei que posso avançar para a arte final. Actualmente ando mais interessado pelo método digital. Hoje são poucos os esquiços em papel, ainda que, volta e meia, os faça. Se a arte final for analógica há uma tendência para que os esboços saiam em papel e vice-versa. No que diz respeito à escrita, a metodologia não se distingue muito da do desenho. Embora algumas histórias tenham um cunho mais espontâneo e livre, outras já envolvem mais planeamento.
Temos excelentes ilustradores em Portugal. Temos excelentes escritores também, somos reconhecidos por isso. Talvez faltem mais bons argumentistas no nosso país. Na tua perspetiva, o que achas da produção de BD portuguesa? O que sugeres que possa ser feito para dar mais visibilidade ao trabalho dos autores nacionais e editoras que apostam na bedê portuguesa?
Temos uma produção muito diversificada e, em geral, as editoras estão abertas a temas menos vulgares. Como a BD nacional não serve de sustento para nenhum autor, estes vêem-se desimpedidos de explorar seja que temáticas forem. No entanto, não deixa de ser verdade que a BD merece um estatuto maior do que tem recebido em Portugal. A meu ver, um maior investimento na sua divulgação, seja em escolas ou espaços culturais, é uma estratégia a considerar. Confesso ter ficado bastante entusiasmado ao saber da aposta do Município de Beja em edificar o primeiro museu de Banda Desenhada em Portugal. É, certamente, um passo que trará consigo enormes benefícios nesta luta pela desmistificação da nona arte.
Entrevistador: Marco Fraga Silva
Artigo Web: Sérgio Santos |