RESENHA BD
Doktor Sleepless: Engines of Desire, Warren Ellis e Ivan Rodriguez
10-06-2019
Não sei se se recordam. Talvez alguns ainda se lembrem disto. Houve uma altura, no passado, em que a internet parecia oferecer a promessa de renovar o futuro. Continuávamos sem férias na lua, carros voadores ou jetpacks, mas a tecnologia digital prometia libertar-nos dos limites das geografias e ideologias clássicas, em direção a uma nova humanidade. Hoje sabemos, com dores no lombo, que coisa não funcionou bem assim. As geografias e ideologias cá continuam, e aprendemos a apreciar as delícias do discurso polarizante dos trolls, comercialização extrema de espaços que prometiam ser comunidades de socialização, radicalizações e falsas realidades alimentadas por algoritmos de otimização da atenção. Não era bem isso o que se tinha em mente quando a internet saiu dos laboratórios. Pior. Continuamos sem carros voadores ou férias na lua. Quanto aos jetpacks, é melhor nem falar.
Se Transmetropolitan é o clássico cyberpunk de Warren Ellis, Doktor Sleepless é o seu passo lógico seguinte. Transmetropolitan era um futuro curiosamente não dissimilar à nossa realidade contemporânea, um mundo de cinismos e novidades incompreensíveis mas em essência uma clássica distopia cyber. Doktor Sleepless é muito mais sinuoso. Embala a distopia sobre uma aparência de normalidade, encapsula o futuro no inesperado. Se Spider Robinson era o cronista degenerado de um futuro cínico, Doktor Sleepless é o cientista louco determinado em aniquilar o futuro através da libertação extrema das pulsões humanas, usando tecnologia radicalizada e ideias meméticas. Mas como tudo se passa em oposição a um futuro cinzento, de corporativismo extremo dos espaços públicos, não o conseguimos ver como um vilão. A sua mensagem destrutiva opõe-se a forças mais discretas e opressivas, e este personagem torna-se um herói perverso de um futuro distorcido.
Não sei se se recordam. Talvez alguns ainda se lembrem disto. Houve uma altura, no passado, em que a internet parecia oferecer a promessa de renovar o futuro. Continuávamos sem férias na lua, carros voadores ou jetpacks, mas a tecnologia digital prometia libertar-nos dos limites das geografias e ideologias clássicas, em direção a uma nova humanidade. Hoje sabemos, com dores no lombo, que coisa não funcionou bem assim. As geografias e ideologias cá continuam, e aprendemos a apreciar as delícias do discurso polarizante dos trolls, comercialização extrema de espaços que prometiam ser comunidades de socialização, radicalizações e falsas realidades alimentadas por algoritmos de otimização da atenção. Não era bem isso o que se tinha em mente quando a internet saiu dos laboratórios. Pior. Continuamos sem carros voadores ou férias na lua. Quanto aos jetpacks, é melhor nem falar.
Se Transmetropolitan é o clássico cyberpunk de Warren Ellis, Doktor Sleepless é o seu passo lógico seguinte. Transmetropolitan era um futuro curiosamente não dissimilar à nossa realidade contemporânea, um mundo de cinismos e novidades incompreensíveis mas em essência uma clássica distopia cyber. Doktor Sleepless é muito mais sinuoso. Embala a distopia sobre uma aparência de normalidade, encapsula o futuro no inesperado. Se Spider Robinson era o cronista degenerado de um futuro cínico, Doktor Sleepless é o cientista louco determinado em aniquilar o futuro através da libertação extrema das pulsões humanas, usando tecnologia radicalizada e ideias meméticas. Mas como tudo se passa em oposição a um futuro cinzento, de corporativismo extremo dos espaços públicos, não o conseguimos ver como um vilão. A sua mensagem destrutiva opõe-se a forças mais discretas e opressivas, e este personagem torna-se um herói perverso de um futuro distorcido.
Warren Ellis sempre se distinguiu pela forma como soube instrumentalizar a internet a seu favor. Doktor Sleepless é um excelente exemplo disso, tendo funcionado como comic e como comunidade online exploratória de ideias radicais. Ellis canaliza boa parte da cultura digital radical ao longo do comic, entre tecnologia adaptada para fins inesperados à cultura visual de ideias iconografizadas que viríamos a chamar de memes. Este é um daqueles comics que não se lê pela história em si, apesar dela ser interessante. Esta é uma sinuosa narrativa sobre um homem traumatizado por vislumbres de criaturas lovecraftianas na sua infância, e que usa a ciência e o seu carisma encarnado numa persona caricatural para oferecer a humanidade em sacrifício aos deuses tenebrosos. O que chama a atenção no texto é o futurismo desgarrado de um argumentista completamente à solta, talvez ainda mais do que em Transmetropolitan. Influências da cultura digital, ligações inesperadas entre ideias, um futurismo vibrante e libertário.
Esta série não teve um final feliz. Enredada nas teias de múltiplos projetos, nunca chegou a ser terminada. Ficaram-nos dezasseis números, alguns dos quais coligidos neste Engines of Desire. Nem sequer chegou a ser editado um segundo volume da série coligida. Lamentavelmente, a série numa chegou a ganhar o estatuto de culto que merecia. O seu futurismo viral, as incríveis ilustrações de Juan Ryp e Raulo Caceres para as capas, a memetização dos seus títulos, a cultura visual underground de que se alimentava, torna as aventuras de Doktor Sleepless algo a descobrir. Fora dos limites editoriais das grandes editoras, que apreciam algum radicalismo atrator de atenção, mas com conta, peso e medida para não chocar ninguém, Ellis aproveitou para explorar estéticas e ideários de um futurismo nalguns aspetos revoltante, noutros, fascinante.
Artur Coelho
Esta série não teve um final feliz. Enredada nas teias de múltiplos projetos, nunca chegou a ser terminada. Ficaram-nos dezasseis números, alguns dos quais coligidos neste Engines of Desire. Nem sequer chegou a ser editado um segundo volume da série coligida. Lamentavelmente, a série numa chegou a ganhar o estatuto de culto que merecia. O seu futurismo viral, as incríveis ilustrações de Juan Ryp e Raulo Caceres para as capas, a memetização dos seus títulos, a cultura visual underground de que se alimentava, torna as aventuras de Doktor Sleepless algo a descobrir. Fora dos limites editoriais das grandes editoras, que apreciam algum radicalismo atrator de atenção, mas com conta, peso e medida para não chocar ninguém, Ellis aproveitou para explorar estéticas e ideários de um futurismo nalguns aspetos revoltante, noutros, fascinante.
Artur Coelho
Doktor Sleepless: Engines of Desire
Autor: Warren Ellis, Ivan Rodriguez
Editora: Avatar Press
Ano de edição: 2008
Páginas: 216, capa mole
Preço: 25€