RESENHA BD
Creepshow, Stephen King e Bernie Wrightson
20-05-2019
Este é, talvez, o lançamento editorial mais intrigante e inesperado do ano. Quase quarenta anos depois da sua publicação original, Creepshow chega-nos em tradução portuguesa. A questão que fica no ar é um certo porquê. Qual é a lógica desta edição? Aposta na banda desenhada de terror, foco no mercado de nostalgia ou alguém ter achado giro trazer uma obra de culto menor, bem conhecida dos fãs do género, aos leitores portugueses? Tantos anos depois da sua publicação original, ainda será um livro criticamente relevante?
Primeiro, algum contexto. Creepshow é um filme de homenagem, congeminada por George Romero (esse mesmo, dos zombies) e Stephen King (o outro grande escritor de terror da Nova Inglaterra, apesar da fama popular que ultrapassa a de Lovecraft), aos comics de horror dos anos 50. Bandas desenhadas num estilo feito de histórias macabras com violência explícita, ironia, moralidade dúbia e uma estética grand guignol de cadáveres, assombrações e crimes hediondos que se comprazia no exagero. Um género alimentado por títulos hoje lendários. São especialmente marcantes os da EC Comics, cuja fórmula foi imitada por outros editores.
Ainda hoje as histórias de títulos como Tales from the Crypt, The Vault of Horror ou The Haunt of Fear, citando as publicações mais marcantes da EC Comics, nos surpreendem pela sua visão de um terror chocante e sem limites. Já as inúmeras cópias em títulos de outras editoras que tentaram alinhar na moda não se recomendam. Se estiverem curiosos, recomendo o blogue The Horrors Of It All, especializado no terror pré-comics code. Ajudava a qualidade dos argumentistas e ilustradores. A lista de colaboradores da EC Comics é um rol de nomes influentes dos comics, literatura de ficção científica e terror.
Estes comics eram tão temíveis que inspiraram um dos mais marcantes pânicos morais do século XX. Quem conhece um pouco da história dos media e cultura popular apercebe-se que este tipo de pânicos vem em ondas, geralmente coincidentes com a popularização de um novo meio de comunicação nos tempos em que este começa a chegar ao grande público. O mesmo tipo de argumentos que foram lançados, à época, contra a indústria dos comics repetiram-se anos depois com a massificação da televisão, dos videojogos e internet. Usamo-los hoje em dia ao falar do impacto dos dispositivos móveis. No século XIX, as mesmas linhas de pensamento condenavam os romances. O fio condutor destes pânicos é a ideia que há consequências negativas da exposição das crianças a estes materiais. Que ler um comic de terror, ver um programa televisivo, jogar um videojogo violento, navegar na internet, usar um smartphone ou ler um romance meloso irá ter uma forte influência negativa no desenvolvimento moral dos futuros adultos, com o correspondente cataclismo na ética e costumes de toda a sociedade. Deixo o exemplo do romance para que vejam o absurdo geracional destes pânicos. Aquilo que chocou os nossos antecessores é para nós normal e banal. O tempo mostrou que não causou degenerações morais generalizadas.
O que distingue este pânico moral de outros é que a indústria dos comics reagiu às acusações policiando-se a si própria, com a adoção de um código que rejeitava explicitamente o tipo de conteúdos de terror gráfico. Acabar-se-iam as imagens grand guignol e os moralismo dúbios. O género simplificou-se e a indústria virou-se para outras vertentes, com o super-herói a emergir dominante. Argumentos simplistas e a dualidade da luta do bem contra o mal encarnados nos combates de ubermenschen epítomes da bondade e coragem são mais agradáveis ao palato dos moralistas, apesar dos fatos das heroínas serem um indisfarçado aceno às pulsões sexuais adolescentes.
Este é, talvez, o lançamento editorial mais intrigante e inesperado do ano. Quase quarenta anos depois da sua publicação original, Creepshow chega-nos em tradução portuguesa. A questão que fica no ar é um certo porquê. Qual é a lógica desta edição? Aposta na banda desenhada de terror, foco no mercado de nostalgia ou alguém ter achado giro trazer uma obra de culto menor, bem conhecida dos fãs do género, aos leitores portugueses? Tantos anos depois da sua publicação original, ainda será um livro criticamente relevante?
Primeiro, algum contexto. Creepshow é um filme de homenagem, congeminada por George Romero (esse mesmo, dos zombies) e Stephen King (o outro grande escritor de terror da Nova Inglaterra, apesar da fama popular que ultrapassa a de Lovecraft), aos comics de horror dos anos 50. Bandas desenhadas num estilo feito de histórias macabras com violência explícita, ironia, moralidade dúbia e uma estética grand guignol de cadáveres, assombrações e crimes hediondos que se comprazia no exagero. Um género alimentado por títulos hoje lendários. São especialmente marcantes os da EC Comics, cuja fórmula foi imitada por outros editores.
Ainda hoje as histórias de títulos como Tales from the Crypt, The Vault of Horror ou The Haunt of Fear, citando as publicações mais marcantes da EC Comics, nos surpreendem pela sua visão de um terror chocante e sem limites. Já as inúmeras cópias em títulos de outras editoras que tentaram alinhar na moda não se recomendam. Se estiverem curiosos, recomendo o blogue The Horrors Of It All, especializado no terror pré-comics code. Ajudava a qualidade dos argumentistas e ilustradores. A lista de colaboradores da EC Comics é um rol de nomes influentes dos comics, literatura de ficção científica e terror.
Estes comics eram tão temíveis que inspiraram um dos mais marcantes pânicos morais do século XX. Quem conhece um pouco da história dos media e cultura popular apercebe-se que este tipo de pânicos vem em ondas, geralmente coincidentes com a popularização de um novo meio de comunicação nos tempos em que este começa a chegar ao grande público. O mesmo tipo de argumentos que foram lançados, à época, contra a indústria dos comics repetiram-se anos depois com a massificação da televisão, dos videojogos e internet. Usamo-los hoje em dia ao falar do impacto dos dispositivos móveis. No século XIX, as mesmas linhas de pensamento condenavam os romances. O fio condutor destes pânicos é a ideia que há consequências negativas da exposição das crianças a estes materiais. Que ler um comic de terror, ver um programa televisivo, jogar um videojogo violento, navegar na internet, usar um smartphone ou ler um romance meloso irá ter uma forte influência negativa no desenvolvimento moral dos futuros adultos, com o correspondente cataclismo na ética e costumes de toda a sociedade. Deixo o exemplo do romance para que vejam o absurdo geracional destes pânicos. Aquilo que chocou os nossos antecessores é para nós normal e banal. O tempo mostrou que não causou degenerações morais generalizadas.
O que distingue este pânico moral de outros é que a indústria dos comics reagiu às acusações policiando-se a si própria, com a adoção de um código que rejeitava explicitamente o tipo de conteúdos de terror gráfico. Acabar-se-iam as imagens grand guignol e os moralismo dúbios. O género simplificou-se e a indústria virou-se para outras vertentes, com o super-herói a emergir dominante. Argumentos simplistas e a dualidade da luta do bem contra o mal encarnados nos combates de ubermenschen epítomes da bondade e coragem são mais agradáveis ao palato dos moralistas, apesar dos fatos das heroínas serem um indisfarçado aceno às pulsões sexuais adolescentes.
Para a história ficou o momento fulgurante da EC Comics, e o seu legado lendário. É sobre ele que Creepshow se debruça, como profunda homenagem à iconografia desta época no horror. Apropriadamente, o filme de Romero foi adaptado a banda desenhada. As histórias de ironia macabra criadas por Stephen King foram ilustradas por Bernie Wrightson, talvez o ilustrador contemporâneo dos anos 80 cujo estilo visual mais se aproximava do estilismo da EC Comics, que contava entre os seus colaboradores lendas como Wally Wood e Al Williamson.
Creepshow são cinco histórias creepy, bem conhecidas pelos fãs do género. Cadáveres vingativos escapam-se das suas campas para executarem vingança assassina sobre filhas e netos em Dia do Pai. Um meteorito contamina um homem e a sua quinta, cobrindo tudo com uma vegetação alienígena enquanto na televisão soam os gritos dos pregadores fundamentalistas cristãos em A Morte Solitária de Jordy Verrill, talvez o mais lovecraftiano destes contos, em referência direta a Colour out of Space e um aceno de Wrightson a Swamp Thing. Horrores esquecidos num contentor permitem a um tranquilo académico livrar-se da esposa que odeia em O Contentor. Em Na Crista da Onda, a vingança de um marido sobre a mulher adúltera e o seu amante serve-se na praia com o encher da maré. A avaricia de um milionário obcecado pela limpeza é recompensada com insetos em A Invasão das Baratas.
São histórias divertidas, macabras e inconsequentes. Assumidamente superficiais, estão cheias de humor negro. Stephen King solta-se nos argumentos, e Bernie Wrightson ilustra-os com um grafismo sólido. Notem, no entanto, que este não é o Bernie Wrightson magistral de Frankenstein ou Swamp Thing. O estilo aqui é mais simples e apressado.
Regressemos ao início. Valeu a pena a leitura em português? Este livro é significativo? Quase quarenta anos depois, suspeito que a maior parte dos potenciais leitores não compreendam a ironia ou a homenagem. E os que percebem já tiveram muito tempo para ler o Creepshow original. Fãs muito conhecedores ficam de curiosidade aguçada ao saber deste lançamento editorial, mas para lá desse campo restrito tenho dúvidas que o livro desperte as atenções. Mais interessante do que publicar a vénia dos anos 80 ao estilo EC Comics, vinda de um filme obscuro e menor de Romero, seria trazer para os leitores portugueses algumas das histórias clássicas de Tales from the Crypt ou Vault of Horror. Creepshow está demasiado datado para se manter criticamente significativo.
Apesar destas reservas, devo dizer que apreciei ler finalmente estas histórias em português. Se vasculhar na biblioteca, vou encontrá-las dispersas por várias publicações e antologias. A primeira vez que as li foi na USA Comics, uma já desaparecida revista francesa que editava histórias de autores americanos para o público francês, responsável por uma parte importante da minha aprendizagem nesta área.
A edição é sólida, pese embora alguns incompreensíveis atropelos de tradução. Suspeito que "presunto gratinado" não seja bem a tradução real do texto original, citando um dos exemplos mais óbvios. Efeitos secundários do Google Translate, talvez. A edição é balizada por um prefácio enquadrador que nos resume a história da EC Comics, o pânico moral e a Comics Code, referenciado a vénia de King e Wrightson. Encerra com um texto curioso que aponta para a misoginia e supremacia da masculinidade tóxica deste género de histórias. Uma nota de preocupação contemporânea para apontar. Mas se se refletir bem, estes toques misóginos são um dos elementos base do horror grand guignol, que se compraz em chafurdar no sangue dos estereótipos morais.
Artur Coelho
Creepshow são cinco histórias creepy, bem conhecidas pelos fãs do género. Cadáveres vingativos escapam-se das suas campas para executarem vingança assassina sobre filhas e netos em Dia do Pai. Um meteorito contamina um homem e a sua quinta, cobrindo tudo com uma vegetação alienígena enquanto na televisão soam os gritos dos pregadores fundamentalistas cristãos em A Morte Solitária de Jordy Verrill, talvez o mais lovecraftiano destes contos, em referência direta a Colour out of Space e um aceno de Wrightson a Swamp Thing. Horrores esquecidos num contentor permitem a um tranquilo académico livrar-se da esposa que odeia em O Contentor. Em Na Crista da Onda, a vingança de um marido sobre a mulher adúltera e o seu amante serve-se na praia com o encher da maré. A avaricia de um milionário obcecado pela limpeza é recompensada com insetos em A Invasão das Baratas.
São histórias divertidas, macabras e inconsequentes. Assumidamente superficiais, estão cheias de humor negro. Stephen King solta-se nos argumentos, e Bernie Wrightson ilustra-os com um grafismo sólido. Notem, no entanto, que este não é o Bernie Wrightson magistral de Frankenstein ou Swamp Thing. O estilo aqui é mais simples e apressado.
Regressemos ao início. Valeu a pena a leitura em português? Este livro é significativo? Quase quarenta anos depois, suspeito que a maior parte dos potenciais leitores não compreendam a ironia ou a homenagem. E os que percebem já tiveram muito tempo para ler o Creepshow original. Fãs muito conhecedores ficam de curiosidade aguçada ao saber deste lançamento editorial, mas para lá desse campo restrito tenho dúvidas que o livro desperte as atenções. Mais interessante do que publicar a vénia dos anos 80 ao estilo EC Comics, vinda de um filme obscuro e menor de Romero, seria trazer para os leitores portugueses algumas das histórias clássicas de Tales from the Crypt ou Vault of Horror. Creepshow está demasiado datado para se manter criticamente significativo.
Apesar destas reservas, devo dizer que apreciei ler finalmente estas histórias em português. Se vasculhar na biblioteca, vou encontrá-las dispersas por várias publicações e antologias. A primeira vez que as li foi na USA Comics, uma já desaparecida revista francesa que editava histórias de autores americanos para o público francês, responsável por uma parte importante da minha aprendizagem nesta área.
A edição é sólida, pese embora alguns incompreensíveis atropelos de tradução. Suspeito que "presunto gratinado" não seja bem a tradução real do texto original, citando um dos exemplos mais óbvios. Efeitos secundários do Google Translate, talvez. A edição é balizada por um prefácio enquadrador que nos resume a história da EC Comics, o pânico moral e a Comics Code, referenciado a vénia de King e Wrightson. Encerra com um texto curioso que aponta para a misoginia e supremacia da masculinidade tóxica deste género de histórias. Uma nota de preocupação contemporânea para apontar. Mas se se refletir bem, estes toques misóginos são um dos elementos base do horror grand guignol, que se compraz em chafurdar no sangue dos estereótipos morais.
Artur Coelho
Creepshow
Autor: Stephen King, Bernie Wrightson
Editora: Planeta
Ano de edição: 2019
Páginas: 80, capa dura
Preço: 20€