RESENHA BD
Apocalipse: A Revelação de S. João, de Alfredo Castelli e Corrado Roi
13-12-2021
Das poucas vezes que li Martin Mystère, fiquei com a sensação que Alfredo Castelli é um classicista. Para além de ser um clássico, uma vez que este é um dos argumentistas mais longevos da Bonelli, eterno escritor das aventuras do detetive do impossível. Ao lê-lo, percebe-se que a estrutura clássica da série do personagem que criou, tão ao estilo de romance de aventuras da primeira metade do século XX, é um arcaísmo assumido. As histórias de Castelli chegam-nos inspiradas por um outro tempo, de mistérios elegantes e recantos obscuros da História.
Que relação tem esta vertente com visões de apocalipse? É preciso ter um forte pendor classicista para gostar de aprofundar os textos alucinatórios proféticos dos primórdios da mitologia judaico-cristã. Mergulhar a fundo em múltiplas fontes bibliográficas, entre as de história pura e os delírios do esoterismo hermético. No que toca ao cânone dos mitos da religião católica, é difícil encontrar texto mais hermético e desvairado do que o Apocalipse de S. João. Se o lerem imbuídos do espírito místico da religiosidade, encontrarão inúmeros indícios da incompreensibilidade das divindades, com níveis de uma suposta sabedoria que só uns eleitos entre os eleitos podem almejar vislumbrar. Se o lerem pelo seu valor literário, é um texto de um profundo surrealismo avant la lettre, bizarro, não linear, repleto de imagética onírica.
Das poucas vezes que li Martin Mystère, fiquei com a sensação que Alfredo Castelli é um classicista. Para além de ser um clássico, uma vez que este é um dos argumentistas mais longevos da Bonelli, eterno escritor das aventuras do detetive do impossível. Ao lê-lo, percebe-se que a estrutura clássica da série do personagem que criou, tão ao estilo de romance de aventuras da primeira metade do século XX, é um arcaísmo assumido. As histórias de Castelli chegam-nos inspiradas por um outro tempo, de mistérios elegantes e recantos obscuros da História.
Que relação tem esta vertente com visões de apocalipse? É preciso ter um forte pendor classicista para gostar de aprofundar os textos alucinatórios proféticos dos primórdios da mitologia judaico-cristã. Mergulhar a fundo em múltiplas fontes bibliográficas, entre as de história pura e os delírios do esoterismo hermético. No que toca ao cânone dos mitos da religião católica, é difícil encontrar texto mais hermético e desvairado do que o Apocalipse de S. João. Se o lerem imbuídos do espírito místico da religiosidade, encontrarão inúmeros indícios da incompreensibilidade das divindades, com níveis de uma suposta sabedoria que só uns eleitos entre os eleitos podem almejar vislumbrar. Se o lerem pelo seu valor literário, é um texto de um profundo surrealismo avant la lettre, bizarro, não linear, repleto de imagética onírica.
Castelli mergulha a fundo nesse universo ficcional bíblico, com um olhar entre o narrativo e o historiográfico. Na narrativa, regista-se a difícil tarefa de adaptar um texto complexo e não linear às estruturas da banda desenhada. Castelli consegue isso transformando as visões apocalípticas dispersas numa história, com um tom algo pomposo, replicando a elevação profética da obra original. O lado historiográfico confere ritmo à adaptação, cortando o lado necessariamente mais proclamativo do texto profético com incursões sobre a história das visões sobre este apocalipse. Começa com o próprio autor, na ilha de Patmos, passa pelo lado esotérico de Isaac Newton, esbarra no incontornável Crowley, e toca no lirismo de Borges e Bioy Casares. Para além de contextualizar o texto, estas pausas aliviam o algo pomposo tom místico do texto profético.
Este Apocalipse: A Revelação de S. João é um trabalho a quatro mãos. Castelli escreve, interpretando e normalizando o texto milenar. Fica a cargo de Corrado Roi o trazer a sua imagética alucinatória ao papel. É aqui que o livro brilha, no tom preto e branco de sombras difusas que caracteriza o estilo deste desenhador. O livro do Apocalipse poderia ser desenhado recorrendo às fontes clássicas da história da arte, referenciando e repetindo o estilo horror vacui de muitos dos grandes artistas que tocaram neste tema, num grafismo barroco de encher o olho. Para quem conhece o trabalho de Roi, isto é exatamente o que sabemos não esperar dele.
As referências visuais estão lá, da arte medieval a Bosch, entre Blake e Dürer. Mas estas referências são detalhes subtis, no traço nebuloso de Roi. As palavras da profecia ganham vida não pela espectacularidade do traço hiperdetalhado, mas pelo seu preciso oposto, na estética difusa e subtil deste desenhador. O efeito final é tremendo, onírico, a puxar o surreal que o texto sugere.
Segunda proposta da editora A Seita para a sua linha editorial de obras mais sérias, que já nos trouxe o magistral Drácula de Georges Bess, este Apocalipse é uma excelente adição, num ano pleno de grandes lançamentos de banda desenhada em Portugal. Um trabalho de diálogo entre dois criadores ligados ao lado mais comercial da banda desenhada italiana, que aqui cruzam classicismo e subtileza gráfica. O resultado é uma viagem fantástica, que nos recorda um dos textos fundadores da mitologia cristã.
Artur Coelho
Este Apocalipse: A Revelação de S. João é um trabalho a quatro mãos. Castelli escreve, interpretando e normalizando o texto milenar. Fica a cargo de Corrado Roi o trazer a sua imagética alucinatória ao papel. É aqui que o livro brilha, no tom preto e branco de sombras difusas que caracteriza o estilo deste desenhador. O livro do Apocalipse poderia ser desenhado recorrendo às fontes clássicas da história da arte, referenciando e repetindo o estilo horror vacui de muitos dos grandes artistas que tocaram neste tema, num grafismo barroco de encher o olho. Para quem conhece o trabalho de Roi, isto é exatamente o que sabemos não esperar dele.
As referências visuais estão lá, da arte medieval a Bosch, entre Blake e Dürer. Mas estas referências são detalhes subtis, no traço nebuloso de Roi. As palavras da profecia ganham vida não pela espectacularidade do traço hiperdetalhado, mas pelo seu preciso oposto, na estética difusa e subtil deste desenhador. O efeito final é tremendo, onírico, a puxar o surreal que o texto sugere.
Segunda proposta da editora A Seita para a sua linha editorial de obras mais sérias, que já nos trouxe o magistral Drácula de Georges Bess, este Apocalipse é uma excelente adição, num ano pleno de grandes lançamentos de banda desenhada em Portugal. Um trabalho de diálogo entre dois criadores ligados ao lado mais comercial da banda desenhada italiana, que aqui cruzam classicismo e subtileza gráfica. O resultado é uma viagem fantástica, que nos recorda um dos textos fundadores da mitologia cristã.
Artur Coelho
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Apocalipse: A Revelação de S. João
Autor: Alfredo Castelli, Corrado Roi
Editora: A Seita
Ano de edição: 2021
Páginas: 112 páginas, capa dura
Preço: 20€
Apocalipse: A Revelação de S. João
Autor: Alfredo Castelli, Corrado Roi
Editora: A Seita
Ano de edição: 2021
Páginas: 112 páginas, capa dura
Preço: 20€