A DESUMANIZAÇÃO DO SER HUMANO COMO PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DE SENTIDO NO ANTI-HERÓI JUSTICEIRO
2017-02-22
Resumo
O presente artigo analisa o processo de construção do anti-herói Justiceiro a partir do processo de desumanização do seu alter ego Frank Castle, presente na história "The Punisher: Born", do escritor Garth Ennis.
A partir da construção de diálogo entre as obras que tratam personagens de guerra de autores como Stanley Kubrick e Garth Ennis, iremos avaliar a digressão de Frank Castle durante a guerra do Vietname. A trilha de morte e destruição transformou-o num ser que não deseja o final da guerra, mas a manutenção da sua condição de soldado. A questão norteadora deste artigo é analisar um personagem que, em princípio, é um coadjuvante do universo do Homem-Aranha, mas devido a sua popularidade mediática contemporânea, cria um próprio universo em torno de si e tem a sua concepção reconfigurada a partir do lugar-comum da popularização dos heróis dos comics através da guerra. Se, nos primórdios dos comics, os seus autores relacionaram o super-herói ao estereótipo do vencedor da guerra, com personagens como Capitão América, Garth Ennis retrata o herói como oriundo de uma guerra perdida.
O presente estudo contempla a construção de sentido na obra" The Punisher: Born", relaciona a obra com a narrativa audiovisual "Nascido para Matar" de Stanley Kubrick e também a outros personagens mediáticos que contribuíram na construção do imaginário colectivo do veterano de guerra do Vietname e que embalsam a fábula do Justiceiro.
Introdução
A história é ambientada em Outubro de 1971, na Guerra do Vietname (1961- 1975), na base Valley Force, divisa de Cambodja, na qual é apresentado Frank Castle como fuzileiro e líder de um pelotão do exército americano que precisa protegê-lo dos vietcongues e dos próprios soldados, enlouquecidos pelos horrores do conflito nos seus últimos 4 dias de permanência na guerra. De acordo com Michael Chiment, estes short-timers são soldados que já cumpriram seu dever e logo voltarão para casa. (2013, p.207)
Garth Ennis, ao escrever a sinopse para "The Punisher: Born", descreve Frank Castle da seguinte forma:
"(...) Um dos subordinados é o capitão de 22 anos Frank Castle, com o seu olhar infernal e impressão de de estar em casa. (....) Frank gosta desse momento no Vietname, em que Frank realmente pode realizar qualquer coisa. Ele gosta de ação, da adrenalina, e ele está começando a descobrir que gosta de matar. (2016, p.97, tradução nossa.)"
Michael Herr, roteirista de "Nascido para Matar", pondera acerca do imaginário da guerra e o efeito no ser humano em seu quotidiano:
"A guerra é excitante, palpitante. Para quem a vive, ela é uma prova, uma iniciação, algo horrível e detestável. (...) Penso que não há desculpa para que as pessoas se matem umas às outras, mas ao mesmo tempo aceito o fato de que isso vai continuar, porque está em nós e temos de expressá-lo. Fazemos isso todos os dias nas ruas, através de pequenas agressões. E, quando as agressões são institucionalizadas, o resultado é a guerra. (2016, p.97)"
Ao longo da trama, Frank Castle apresenta, por meio de sua relação com os personagens, marcas de discurso próprios do Justiceiro, tais como a relação não emocional com o inimigo, o conceito distorcido de justiça, a empatia ao inocente, a alienação e a declaração de guerra a um inimigo que não pode derrotar.
Garth Ennis relata ao longo da história o completo processo de desumanização dos soldados, que tem o seu ápice de bestialização quando soldados vietcongues invadem o quartel-general de Castle.
O que ocorre na sequência é um massacre deliberado de ambos os lados. Por fim, quem resta dessa chacina é Frank Castle, ou só o seu corpo. A sua humanidade foi-se e o que ficou foi o Justiceiro.
Garth Ennis descreve assim esse momento:
"As tropas norte-americanas encontram Frank: ele está de pé, coberto de sangue, segurando um pedaço de metralhadora quebrada como um taco. Duas dúzias de mortos N.V.A ao seu redor, cada homem brutalmente espancado até a morte. (2016, p.98, tradução nossa.)"
Frank retorna para os Estados Unidos, reencontra a sua família e entende que a mesma é o último elo entre o homem que foi ao Vietname e o Justiceiro que volta da guerra. Um elo que será rompido com a morte de sua família.
O Super-Herói como construção do imaginário vitorioso americano.
Gerry Conway criou o personagem Justiceiro baseando-se numa tendência cinematográfica da década de 1970, que consistiu na criação de personagens que alternavam entre a legalidade e a marginalidade, acusando, julgando e executando pessoas no seu controverso conceito de justiça.
Referências como Charles Bronson em "Desejo de Matar" foram preponderantes para a construção psicológica do Justiceiro. Garth Ennis, responsável pela série analisada neste artigo, aproxima-se de Stanley Kubrick para a construção de Castle na Guerra do Vietname.
Trata-se de um conceito completamente inovador, uma vez que a maioria dos personagens clássicos tiveram as suas origens mais especificamente relacionadas com a Segunda Guerra Mundial. Personagens como Capitão América, Namor e Mulher Maravilha que, entre outras, foram responsáveis por publicar e estabelecer a imagem do herói americano.
Os comics criaram personagens que são a Mitologia Americana. Se os Gregos tinham seus personagens idealizados e os Judeus personagens representativas de seu povo direccionados pelo próprio Deus, os Estados Unidos agora tinham os seus próprios heróis, adaptados para uma media e consumidos, acima de tudo, por jovens e adolescentes em fase de formação intelectual.
Coogan descreve como um personagem heróico com uma missão altruísta, pró-social; com superpoderes - capacidades extraordinárias, tecnologia avançada ou habilidades físicas, mentais ou místicas altamente desenvolvidas; que tem uma identidade de super-herói manifestada num nome de código e trajes icónicos, os quais tipicamente expressam sua biografia, carácter, poderes ou origem (transformação de pessoa ordinária em super-herói); e que é genericamente distinto, ou seja, pode ser distinguido de personagens de géneros relacionados (fantasia, ficção científica, detective etc.) por uma preponderância de convenções genéricas. Frequentemente, super-heróis têm dupla identidade, sendo elas geralmente um segredo muito bem guardado (2006, p.30, tradução nossa).
O personagem é publicado em revistas formato comics e dentro da construção de sua fábula encontramos elementos que são alheios a uma realidade de guerra mas aplicável ao ser mitológico americano.
Resumo
O presente artigo analisa o processo de construção do anti-herói Justiceiro a partir do processo de desumanização do seu alter ego Frank Castle, presente na história "The Punisher: Born", do escritor Garth Ennis.
A partir da construção de diálogo entre as obras que tratam personagens de guerra de autores como Stanley Kubrick e Garth Ennis, iremos avaliar a digressão de Frank Castle durante a guerra do Vietname. A trilha de morte e destruição transformou-o num ser que não deseja o final da guerra, mas a manutenção da sua condição de soldado. A questão norteadora deste artigo é analisar um personagem que, em princípio, é um coadjuvante do universo do Homem-Aranha, mas devido a sua popularidade mediática contemporânea, cria um próprio universo em torno de si e tem a sua concepção reconfigurada a partir do lugar-comum da popularização dos heróis dos comics através da guerra. Se, nos primórdios dos comics, os seus autores relacionaram o super-herói ao estereótipo do vencedor da guerra, com personagens como Capitão América, Garth Ennis retrata o herói como oriundo de uma guerra perdida.
O presente estudo contempla a construção de sentido na obra" The Punisher: Born", relaciona a obra com a narrativa audiovisual "Nascido para Matar" de Stanley Kubrick e também a outros personagens mediáticos que contribuíram na construção do imaginário colectivo do veterano de guerra do Vietname e que embalsam a fábula do Justiceiro.
Introdução
A história é ambientada em Outubro de 1971, na Guerra do Vietname (1961- 1975), na base Valley Force, divisa de Cambodja, na qual é apresentado Frank Castle como fuzileiro e líder de um pelotão do exército americano que precisa protegê-lo dos vietcongues e dos próprios soldados, enlouquecidos pelos horrores do conflito nos seus últimos 4 dias de permanência na guerra. De acordo com Michael Chiment, estes short-timers são soldados que já cumpriram seu dever e logo voltarão para casa. (2013, p.207)
Garth Ennis, ao escrever a sinopse para "The Punisher: Born", descreve Frank Castle da seguinte forma:
"(...) Um dos subordinados é o capitão de 22 anos Frank Castle, com o seu olhar infernal e impressão de de estar em casa. (....) Frank gosta desse momento no Vietname, em que Frank realmente pode realizar qualquer coisa. Ele gosta de ação, da adrenalina, e ele está começando a descobrir que gosta de matar. (2016, p.97, tradução nossa.)"
Michael Herr, roteirista de "Nascido para Matar", pondera acerca do imaginário da guerra e o efeito no ser humano em seu quotidiano:
"A guerra é excitante, palpitante. Para quem a vive, ela é uma prova, uma iniciação, algo horrível e detestável. (...) Penso que não há desculpa para que as pessoas se matem umas às outras, mas ao mesmo tempo aceito o fato de que isso vai continuar, porque está em nós e temos de expressá-lo. Fazemos isso todos os dias nas ruas, através de pequenas agressões. E, quando as agressões são institucionalizadas, o resultado é a guerra. (2016, p.97)"
Ao longo da trama, Frank Castle apresenta, por meio de sua relação com os personagens, marcas de discurso próprios do Justiceiro, tais como a relação não emocional com o inimigo, o conceito distorcido de justiça, a empatia ao inocente, a alienação e a declaração de guerra a um inimigo que não pode derrotar.
Garth Ennis relata ao longo da história o completo processo de desumanização dos soldados, que tem o seu ápice de bestialização quando soldados vietcongues invadem o quartel-general de Castle.
O que ocorre na sequência é um massacre deliberado de ambos os lados. Por fim, quem resta dessa chacina é Frank Castle, ou só o seu corpo. A sua humanidade foi-se e o que ficou foi o Justiceiro.
Garth Ennis descreve assim esse momento:
"As tropas norte-americanas encontram Frank: ele está de pé, coberto de sangue, segurando um pedaço de metralhadora quebrada como um taco. Duas dúzias de mortos N.V.A ao seu redor, cada homem brutalmente espancado até a morte. (2016, p.98, tradução nossa.)"
Frank retorna para os Estados Unidos, reencontra a sua família e entende que a mesma é o último elo entre o homem que foi ao Vietname e o Justiceiro que volta da guerra. Um elo que será rompido com a morte de sua família.
O Super-Herói como construção do imaginário vitorioso americano.
Gerry Conway criou o personagem Justiceiro baseando-se numa tendência cinematográfica da década de 1970, que consistiu na criação de personagens que alternavam entre a legalidade e a marginalidade, acusando, julgando e executando pessoas no seu controverso conceito de justiça.
Referências como Charles Bronson em "Desejo de Matar" foram preponderantes para a construção psicológica do Justiceiro. Garth Ennis, responsável pela série analisada neste artigo, aproxima-se de Stanley Kubrick para a construção de Castle na Guerra do Vietname.
Trata-se de um conceito completamente inovador, uma vez que a maioria dos personagens clássicos tiveram as suas origens mais especificamente relacionadas com a Segunda Guerra Mundial. Personagens como Capitão América, Namor e Mulher Maravilha que, entre outras, foram responsáveis por publicar e estabelecer a imagem do herói americano.
Os comics criaram personagens que são a Mitologia Americana. Se os Gregos tinham seus personagens idealizados e os Judeus personagens representativas de seu povo direccionados pelo próprio Deus, os Estados Unidos agora tinham os seus próprios heróis, adaptados para uma media e consumidos, acima de tudo, por jovens e adolescentes em fase de formação intelectual.
Coogan descreve como um personagem heróico com uma missão altruísta, pró-social; com superpoderes - capacidades extraordinárias, tecnologia avançada ou habilidades físicas, mentais ou místicas altamente desenvolvidas; que tem uma identidade de super-herói manifestada num nome de código e trajes icónicos, os quais tipicamente expressam sua biografia, carácter, poderes ou origem (transformação de pessoa ordinária em super-herói); e que é genericamente distinto, ou seja, pode ser distinguido de personagens de géneros relacionados (fantasia, ficção científica, detective etc.) por uma preponderância de convenções genéricas. Frequentemente, super-heróis têm dupla identidade, sendo elas geralmente um segredo muito bem guardado (2006, p.30, tradução nossa).
O personagem é publicado em revistas formato comics e dentro da construção de sua fábula encontramos elementos que são alheios a uma realidade de guerra mas aplicável ao ser mitológico americano.
Fig.01 FONTE: (KIRBY. 1941)
Em um combate essencialmente bélico, o Sentinela da Liberdade utiliza apenas um escudo como arma. Não há indícios de que o Capitão América tenha matado alguém na guerra e o seu senso de justiça e honestidade são de natureza ilibada.
Esse herói foi referência e construção do imaginário do herói americano para jovens, adolescentes, famílias e sociedade americana em tempos de guerra, tanto que o mesmo cuida, protege e transforma em parceiro um jovem soldado denominado Bucky Barnes.
A origem de Capitão América permanece inalterada desde 1941, mesmo que a sociedade americana tenha experimentado novas guerras e uma nova ciência, Capitão América é um dos principais exemplos de personagem americano mitológico. Personagem criado por Joe Simon e Jack Kirby, foi moldado especificamente para retratar e inspirar jovens a seguir o modelo de vida hétero normativo americano.
Steve Rogers era um jovem aspirante a soldado, com ideais patrióticos norte-americanos que foi recusado a ir para a Segunda Guerra Mundial devido sua condição física.
Convidado por um cientista para uma experiência chamada projecto Super-Soldado, Steve Rogers submete-se como cobaia e, após receber uma combinação de raios Vita e um soro, ele deixa de ser um rapaz franzino para um atleta.
Caracterizado com um uniforme baseado nas cores americanas ele vai para a Segunda Guerra sob a alcunha de Capitão América.
Segundo Campbell, um herói vindo do mundo quotidiano aventura-se numa região de prodígios sobrenaturais; ali encontra fabulosas forças e obtém uma vitória decisiva; o herói retorna da sua misteriosa aventura com o poder de trazer benefícios aos seus semelhantes (2007, p.36)
O Justiceiro acaba por ser um personagem desmistificado e mais próximo dos problemas contemporâneos dos que vivem à margem da nossa sociedade. Garth Ennis reconfigura a origem do personagem Justiceiro estabelecendo um paralelo com os heróis desenvolvidos no período entre guerras, mas apontando outro ponto de vista, o do herói que perde a guerra, que se traumatiza com o que viu no dia-a-dia do combate e que se desumanizou ao ponto de se tornar um ser frio, focado na destruição do inimigo.
De acordo com Michael Ciment:
No Vietname, o senso do absurdo dominava, a opinião pública americana não apoiava realmente as tropas e estas, já desorientadas, não sabiam por que lutavam. Não é surpreendente então que as perdas por suicídio depois do regresso da guerra tenham sido maiores do que as mortes em combate. O Vietname foi também a primeira guerra que os Estados Unidos perderam e, além disso, num clima de dúvida quanto à sua missão. (2013, p.211)
Nos comics, temos diversos exemplos de personagens que são feitos de traumas oriundos da guerra. Magneto era um garoto judeu que perdeu a sua família nos campos de concentração nazis. Bazuca é um soldado oriundo de um projecto de criação de super-soldados, semelhante ao do Capitão América, mas que lutou na Guerra do Vietname. A guerra e os remédios que o soldado tomou deixaram-no psicótico.
Em um combate essencialmente bélico, o Sentinela da Liberdade utiliza apenas um escudo como arma. Não há indícios de que o Capitão América tenha matado alguém na guerra e o seu senso de justiça e honestidade são de natureza ilibada.
Esse herói foi referência e construção do imaginário do herói americano para jovens, adolescentes, famílias e sociedade americana em tempos de guerra, tanto que o mesmo cuida, protege e transforma em parceiro um jovem soldado denominado Bucky Barnes.
A origem de Capitão América permanece inalterada desde 1941, mesmo que a sociedade americana tenha experimentado novas guerras e uma nova ciência, Capitão América é um dos principais exemplos de personagem americano mitológico. Personagem criado por Joe Simon e Jack Kirby, foi moldado especificamente para retratar e inspirar jovens a seguir o modelo de vida hétero normativo americano.
Steve Rogers era um jovem aspirante a soldado, com ideais patrióticos norte-americanos que foi recusado a ir para a Segunda Guerra Mundial devido sua condição física.
Convidado por um cientista para uma experiência chamada projecto Super-Soldado, Steve Rogers submete-se como cobaia e, após receber uma combinação de raios Vita e um soro, ele deixa de ser um rapaz franzino para um atleta.
Caracterizado com um uniforme baseado nas cores americanas ele vai para a Segunda Guerra sob a alcunha de Capitão América.
Segundo Campbell, um herói vindo do mundo quotidiano aventura-se numa região de prodígios sobrenaturais; ali encontra fabulosas forças e obtém uma vitória decisiva; o herói retorna da sua misteriosa aventura com o poder de trazer benefícios aos seus semelhantes (2007, p.36)
O Justiceiro acaba por ser um personagem desmistificado e mais próximo dos problemas contemporâneos dos que vivem à margem da nossa sociedade. Garth Ennis reconfigura a origem do personagem Justiceiro estabelecendo um paralelo com os heróis desenvolvidos no período entre guerras, mas apontando outro ponto de vista, o do herói que perde a guerra, que se traumatiza com o que viu no dia-a-dia do combate e que se desumanizou ao ponto de se tornar um ser frio, focado na destruição do inimigo.
De acordo com Michael Ciment:
No Vietname, o senso do absurdo dominava, a opinião pública americana não apoiava realmente as tropas e estas, já desorientadas, não sabiam por que lutavam. Não é surpreendente então que as perdas por suicídio depois do regresso da guerra tenham sido maiores do que as mortes em combate. O Vietname foi também a primeira guerra que os Estados Unidos perderam e, além disso, num clima de dúvida quanto à sua missão. (2013, p.211)
Nos comics, temos diversos exemplos de personagens que são feitos de traumas oriundos da guerra. Magneto era um garoto judeu que perdeu a sua família nos campos de concentração nazis. Bazuca é um soldado oriundo de um projecto de criação de super-soldados, semelhante ao do Capitão América, mas que lutou na Guerra do Vietname. A guerra e os remédios que o soldado tomou deixaram-no psicótico.
Fig.02 FONTE: (MILLER; MAZZUCCHELLI. 1986)
O Comediante é um super herói que apresentava uma personalidade dúbia desde antes da Guerra do Vietname, mas é no momento em que é destacado para lutar no conflito que o seu processo de desumanização se completa. Uma vietcongue entra em um bar onde o Comediante estava descansando e bebendo com soldados americanos.
Ela inquire-o acerca de uma suposta responsabilidade sobre a paternidade da criança que a mesma está esperando. O Comediante nega e trata-a com desdém. Indignada, ela fere-o com uma garrafa quebrada no rosto. O Comediante espanca-a e desfere tiros contra a garota, ceifando a sua vida. O Comediante ainda iria cometer genocídios em aldeias, matando soldados vietnamitas, homens, idosos, mulheres e crianças.
Mesmo as personagens criados com o intuito de serem seres idealizados aplicaram processos questionáveis de justiça na guerra. O maior exemplo é a Mulher Maravilha, que incentivou e participou num linchamento colectivo de homens que violaram camponesas.
Essas versões apresentadas possuem um ponto de convergência, que são os seus escritores. Alan Moore, Darwyn Cooke, Bryan Singer e Garth Ennis são expoentes da década de 80 e 90, ou seja, pós-guerra do Vietname e não possuem compromisso com versões propagandistas americanas.
O Comediante é um super herói que apresentava uma personalidade dúbia desde antes da Guerra do Vietname, mas é no momento em que é destacado para lutar no conflito que o seu processo de desumanização se completa. Uma vietcongue entra em um bar onde o Comediante estava descansando e bebendo com soldados americanos.
Ela inquire-o acerca de uma suposta responsabilidade sobre a paternidade da criança que a mesma está esperando. O Comediante nega e trata-a com desdém. Indignada, ela fere-o com uma garrafa quebrada no rosto. O Comediante espanca-a e desfere tiros contra a garota, ceifando a sua vida. O Comediante ainda iria cometer genocídios em aldeias, matando soldados vietnamitas, homens, idosos, mulheres e crianças.
Mesmo as personagens criados com o intuito de serem seres idealizados aplicaram processos questionáveis de justiça na guerra. O maior exemplo é a Mulher Maravilha, que incentivou e participou num linchamento colectivo de homens que violaram camponesas.
Essas versões apresentadas possuem um ponto de convergência, que são os seus escritores. Alan Moore, Darwyn Cooke, Bryan Singer e Garth Ennis são expoentes da década de 80 e 90, ou seja, pós-guerra do Vietname e não possuem compromisso com versões propagandistas americanas.
Fig.03 FONTE: (MOORE; GIBBONS. 1987)
Em relação ao posicionamento político dos autores de histórias em quadrinhos da década de 80 e 90, Pinheiro destaca:
"Ao longo das décadas e ainda hoje, muitos dos roteiristas e artistas da área têm, de fato, se posicionado politicamente como liberais (na acepção do termo no contexto norte-americano), boa parte deles formada por descendentes de judeus, italianos e hispânicos, no geral adeptos de uma visão cosmopolita e socialmente consciente dos EUA (DIPAOLO, 2011). Além disso, entre os autores mais renomeados da indústria estão os britânicos Alan Moore, Mark Millar, Warren Ellis e Grant Morrison - oriundos da classe trabalhadora do Reino Unido e/ou simpatizantes do Partido Trabalhista do país, que construíram as suas carreiras escrevendo roteiros iconoclastas e apologéticos a ideias e causas como o anarquismo, a liberdade de expressão, anti-belicismo e o ambientalismo. (2016, p.45)"
É importante frisar que, dentre os personagens citados como heróis, o único personagem que possui a guerra com núcleo formador e direccional de carácter é o Justiceiro, uma vez que Comediante já era um herói antes da Guerra do Vietname, Magneto é retratado como um terrorista na maior parte de suas apresentações como personagem e a Mulher Maravilha possui esse capítulo como um evento isolado, oriundo da visão específica de um autor. No caso do Justiceiro, a versão de Ennis se sustenta e é desenvolvida pelos seus escritores posteriores como Jason Aaron e Becky Cloonan, entre outros.
A desumanização do humano no processo de construção do Anti - Herói Justiceiro.
Garth Ennis apresenta de maneira progressiva ao longo da trama "The Punisher: Born" as marcas de discurso que iremos encontrar na fábula do Justiceiro e que complementa a concepção original de Gerry Conway para o personagem.
Conway criou inicialmente um Frank Castle idealizado, sem traumas de guerra e que iria transformar-se em Justiceiro após o assassinato da sua família. Steven Grant é o escritor que realizou a principais obras de referência pós-Conway e manteve o mesmo tom idealizado de Frank, apesar de aprofundar a personalidade do Justiceiro a ponto de torná-lo o psicótico que vemos em Ennis, mas que deixa uma questão norteadora, que é a figura de Frank Castle.
O mérito de Garth Ennis é mostrar um Frank Castle que se desumaniza ao longo de um processo que se inicia com a crença de Castle nas instituições americanas, tais como o exército, e termina com a descrença em qualquer processo civilizatório. O Justiceiro é, em essência, um personagem anárquico.
Garth Ennis começa o processo de desumanização de Frank Castle logo na primeira parte da Graphic Novel com a narrativa sob o ponto de vista de Stevie Goodwin, um soldado que representa o ideal norte-americano de bondade e patriotismo, de homem romântico e herói do mundo. Stevie descreve Frank Castle como um homem que pode proteger e liderar o batalhão, mas que é nítido em suas ações que está deixando de ser um herói de guerra para se tornar numa máquina fria de combate.
Ennis realiza assim uma comparação entre o herói idealizado, que observamos em Stevie, e o herói necessário, no caso de Frank Castle. Ambos se encontram durante a história e ajudam-nos a entender um e o outro. De acordo com Garth Ennis:
"Enquanto Frank pode representar a máquina de guerra sombria, o ideal Americano no pior sentido da palavra (outro ponto que eu não pretendo trabalhar de forma extensa), jovem Stevie é a América no seu melhor. (p.97,2016, tradução nossa.)"
Outro elemento no qual Garth Ennis pondera é o facto dos soldados serem chamados por apelidos ou cognomes. A guerra tira a sua identidade civil e entrega uma ficha com um número. No meio do conflito, o soldado é novamente reconfigurado, dessa vez com apelidos.
Stanley Kubrick utilizou o mesmo artifício na construção de seus personagens em "Nascido para Matar". De acordo com Michael Ciment:
"Antes de morrerem baleados, os soldados serão privados de sua identidade e chamados por apelidos como Joker, Animal Mother, Eightball, Cowboy, Rafterman, Pyle (nome de um herói idiota de uma série de TV), Crazy Earl. (2013, p.208)"
Quem estabelece uma relação análoga a Frank Castle é o personagem negro Angel. Trata-se de um soldado que não tem ilusões acerca do seu fim naquele conflito e na descrença total nas instituições.
Assim como Castle, ele também passa por um processo de desumanização, mas por meio do entorpecimento das drogas. Angel também estabelece uma relação complementar com Stevie, porém de cunho dependente, tendo Stevie como uma espécie de protector e orientador. No final da história, o quadro inverte-se e quem acaba sendo orientado acerca do fim inevitável é Stevie.
Em relação ao posicionamento político dos autores de histórias em quadrinhos da década de 80 e 90, Pinheiro destaca:
"Ao longo das décadas e ainda hoje, muitos dos roteiristas e artistas da área têm, de fato, se posicionado politicamente como liberais (na acepção do termo no contexto norte-americano), boa parte deles formada por descendentes de judeus, italianos e hispânicos, no geral adeptos de uma visão cosmopolita e socialmente consciente dos EUA (DIPAOLO, 2011). Além disso, entre os autores mais renomeados da indústria estão os britânicos Alan Moore, Mark Millar, Warren Ellis e Grant Morrison - oriundos da classe trabalhadora do Reino Unido e/ou simpatizantes do Partido Trabalhista do país, que construíram as suas carreiras escrevendo roteiros iconoclastas e apologéticos a ideias e causas como o anarquismo, a liberdade de expressão, anti-belicismo e o ambientalismo. (2016, p.45)"
É importante frisar que, dentre os personagens citados como heróis, o único personagem que possui a guerra com núcleo formador e direccional de carácter é o Justiceiro, uma vez que Comediante já era um herói antes da Guerra do Vietname, Magneto é retratado como um terrorista na maior parte de suas apresentações como personagem e a Mulher Maravilha possui esse capítulo como um evento isolado, oriundo da visão específica de um autor. No caso do Justiceiro, a versão de Ennis se sustenta e é desenvolvida pelos seus escritores posteriores como Jason Aaron e Becky Cloonan, entre outros.
A desumanização do humano no processo de construção do Anti - Herói Justiceiro.
Garth Ennis apresenta de maneira progressiva ao longo da trama "The Punisher: Born" as marcas de discurso que iremos encontrar na fábula do Justiceiro e que complementa a concepção original de Gerry Conway para o personagem.
Conway criou inicialmente um Frank Castle idealizado, sem traumas de guerra e que iria transformar-se em Justiceiro após o assassinato da sua família. Steven Grant é o escritor que realizou a principais obras de referência pós-Conway e manteve o mesmo tom idealizado de Frank, apesar de aprofundar a personalidade do Justiceiro a ponto de torná-lo o psicótico que vemos em Ennis, mas que deixa uma questão norteadora, que é a figura de Frank Castle.
O mérito de Garth Ennis é mostrar um Frank Castle que se desumaniza ao longo de um processo que se inicia com a crença de Castle nas instituições americanas, tais como o exército, e termina com a descrença em qualquer processo civilizatório. O Justiceiro é, em essência, um personagem anárquico.
Garth Ennis começa o processo de desumanização de Frank Castle logo na primeira parte da Graphic Novel com a narrativa sob o ponto de vista de Stevie Goodwin, um soldado que representa o ideal norte-americano de bondade e patriotismo, de homem romântico e herói do mundo. Stevie descreve Frank Castle como um homem que pode proteger e liderar o batalhão, mas que é nítido em suas ações que está deixando de ser um herói de guerra para se tornar numa máquina fria de combate.
Ennis realiza assim uma comparação entre o herói idealizado, que observamos em Stevie, e o herói necessário, no caso de Frank Castle. Ambos se encontram durante a história e ajudam-nos a entender um e o outro. De acordo com Garth Ennis:
"Enquanto Frank pode representar a máquina de guerra sombria, o ideal Americano no pior sentido da palavra (outro ponto que eu não pretendo trabalhar de forma extensa), jovem Stevie é a América no seu melhor. (p.97,2016, tradução nossa.)"
Outro elemento no qual Garth Ennis pondera é o facto dos soldados serem chamados por apelidos ou cognomes. A guerra tira a sua identidade civil e entrega uma ficha com um número. No meio do conflito, o soldado é novamente reconfigurado, dessa vez com apelidos.
Stanley Kubrick utilizou o mesmo artifício na construção de seus personagens em "Nascido para Matar". De acordo com Michael Ciment:
"Antes de morrerem baleados, os soldados serão privados de sua identidade e chamados por apelidos como Joker, Animal Mother, Eightball, Cowboy, Rafterman, Pyle (nome de um herói idiota de uma série de TV), Crazy Earl. (2013, p.208)"
Quem estabelece uma relação análoga a Frank Castle é o personagem negro Angel. Trata-se de um soldado que não tem ilusões acerca do seu fim naquele conflito e na descrença total nas instituições.
Assim como Castle, ele também passa por um processo de desumanização, mas por meio do entorpecimento das drogas. Angel também estabelece uma relação complementar com Stevie, porém de cunho dependente, tendo Stevie como uma espécie de protector e orientador. No final da história, o quadro inverte-se e quem acaba sendo orientado acerca do fim inevitável é Stevie.
Fig.04 FONTE: (ENNIS; ROBERTSON. 2016)
Fig.05 FONTE: (KUBRICK. 1987)
Garth Ennis dialoga com Kubrick ao transformar as armas em personagens, a ponto de desempenharem um papel de protagonista na trama. O exemplo maior é a arma de Castle, que ele empunha quando a situação está desfavorável. A sequência de traumas que resultam na bestialização humana ocorrem ao longo da narrativa.
Soldados apostam acerca da possibilidade de um avião ser abatido ou não pelo inimigo. Após os soldados de Castle emboscarem um grupo de vietcongues e os aniquilaram, comemoram o acerto de um fugitivo com uma granada. Esse mesmo episódio é realizado pelos soldados rituais como a retirada do escalpo de vietcongues.
O racismo é apresentado durante toda a história, bem como variáveis de estupro, colectivo, individual, homossexual e heterossexual. As sucessivas mortes e os constantes testemunhos das mesmas a ponto de anular a comoção humana e a completa falta de empatia ao inimigo, que não tem rosto, nome ou história. Todos são chamados de Charlie.
Fig.05 FONTE: (KUBRICK. 1987)
Garth Ennis dialoga com Kubrick ao transformar as armas em personagens, a ponto de desempenharem um papel de protagonista na trama. O exemplo maior é a arma de Castle, que ele empunha quando a situação está desfavorável. A sequência de traumas que resultam na bestialização humana ocorrem ao longo da narrativa.
Soldados apostam acerca da possibilidade de um avião ser abatido ou não pelo inimigo. Após os soldados de Castle emboscarem um grupo de vietcongues e os aniquilaram, comemoram o acerto de um fugitivo com uma granada. Esse mesmo episódio é realizado pelos soldados rituais como a retirada do escalpo de vietcongues.
O racismo é apresentado durante toda a história, bem como variáveis de estupro, colectivo, individual, homossexual e heterossexual. As sucessivas mortes e os constantes testemunhos das mesmas a ponto de anular a comoção humana e a completa falta de empatia ao inimigo, que não tem rosto, nome ou história. Todos são chamados de Charlie.
Fig.06 FONTE: (ENNIS; ROBERTSON. 2016)
De acordo com Stanley Kubrick:
"Eles não estavam culturalmente preparados para enfrentar a situação na qual se encontraram e saber que cada homem, cada mulher, cada criança podia ser um vietcongue não melhorava as coisas. As tropas sabiam que não havia esperança na guerra e que as pessoas em casa recebiam uma imagem falsa dela. A guerra era um mal, os soldados e civis eram suas vítimas. (2013, p.213)"
Frank Castle não humaniza o inimigo em "The Punisher: Born". O exemplo mais emblemático é quando os soldados encontram uma garota vietcongue ferida e tentando suicidar-se. Enquanto os soldados buscam violá-la por meio de um estupro colectivo, retirando toda e qualquer noção de humanidade àquela mulher, descarregando o ódio e frustração por estar naquela guerra.
Frank Castle interfere na ação e a executa sem demonstrar qualquer sentimento. É apenas mais um inimigo que precisa ser eliminado. A mulher vietnamita de Garth Ennis é mais um personagem anónimo que estabelece um diálogo com a obra de Kubrick, a qual tem uma personagem em situação semelhante, entretanto quem a executa é um personagem com o ideal imaginário semelhante a Stevie Goodwin.
De acordo com Stanley Kubrick:
"Eles não estavam culturalmente preparados para enfrentar a situação na qual se encontraram e saber que cada homem, cada mulher, cada criança podia ser um vietcongue não melhorava as coisas. As tropas sabiam que não havia esperança na guerra e que as pessoas em casa recebiam uma imagem falsa dela. A guerra era um mal, os soldados e civis eram suas vítimas. (2013, p.213)"
Frank Castle não humaniza o inimigo em "The Punisher: Born". O exemplo mais emblemático é quando os soldados encontram uma garota vietcongue ferida e tentando suicidar-se. Enquanto os soldados buscam violá-la por meio de um estupro colectivo, retirando toda e qualquer noção de humanidade àquela mulher, descarregando o ódio e frustração por estar naquela guerra.
Frank Castle interfere na ação e a executa sem demonstrar qualquer sentimento. É apenas mais um inimigo que precisa ser eliminado. A mulher vietnamita de Garth Ennis é mais um personagem anónimo que estabelece um diálogo com a obra de Kubrick, a qual tem uma personagem em situação semelhante, entretanto quem a executa é um personagem com o ideal imaginário semelhante a Stevie Goodwin.
Fig.07 FONTE: (KUBRICK, 2017; ENNIS; ROBERTSON. 2016)
Alguns lampejos de humanidade são apresentados por Garth Ennis. Os diálogos mediados por Stevie, tanto com Frank como com Angel, fazem lembrar-nos que são muito mais que meros soldados ou números cravados numa medalha de identificação.
Vale ressalvar que Ennis é breve nesses diálogos, como se quisesse estabelecer uma pausa ao leitor, ponderar o ponto de vista de cada personagem e depois recomeçar o ritmo frenético de guerra e matança. Um exemplo é o diálogo entre Castle e Stevie após a tentativa de estupro da vietnamita pelos soldados. Segundo Garth Ennis,
"(...) De volta a Valley Forge, Frank revela a Stevie que sabe que ele o viu. Apesar de ter dificuldade em se expressar em palavras, ele fala de sentir a necessidade de punir o homem e corrigir as coisas. Ele não sente a necessidade de ameaçar Stevie, de alguma forma os dois homens sabem que nada mais será dito, O verdadeiro pesadelo para Stevie é sua crença de que atirar na mulher era de alguma forma a idéia de Frank de ajudá-la. (p.97,2016, tradução nossa.)"
Um diálogo que estimula o imaginário e reforça a tese de que o Justiceiro nasce daquela guerra é o que ele trava com uma voz, que o letrista reforça colocando as letras em branco sob um fundo preto. O diálogo se assemelha a um demónio que procura negociar com Frank Castle acerca da sua manutenção enquanto guerreiro dentro de uma guerra eterna.
O primeiro diálogo entre Frank e a voz dá-se quando um militar condecorado vai visitar a base da qual Frank Castle é um dos responsáveis e ameaça fechar a base por desordem organizacional. Frank, que teria sido destacado a dar uma visita guiada ao militar, o coloca de frente a um campo a céu aberto, tornando-se num alvo para os vietcongues, o que resulta na sua morte. Aqui é o primeiro indício de que Frank não quer o fim da guerra e fará de tudo para se manter como um soldado, até mesmo seguir uma voz que parece ser um demónio.
Esse recurso que Garth Ennis utiliza em "The Punisher: Born" é comum no nosso quotidiano, uma vez que a sociedade ocidental vive em configuração social forjada pelo Cristianismo agregado a sincretismos religiosos. Ennis se apropria de personagens psicóticas que alegam ter ouvido vozes para realizar um crime ou um atentado e direcciona isso não somente para um estado de loucura, mas um estado de possessão demoníaca. Ennis introduz esse elemento novo na fábula do Justiceiro e o aproxima do imaginário social de que há pessoas boas, más e até mesmo santificadas e demonizadas.
Esse diálogo vai-se intensificando ao longo da trama e chega ao clímax na parte final da trama, com Frank aceitando o acordo do demónio e ao encontrar sua família, a voz deixa claro que irá cobrar o acordo que Frank fez e que o ajudou a liquidar um pelotão de vietcongues sozinho, uma vez que seu exército estava totalmente liquidado.
Nesse momento os personagens da trama também conhecem o seu final.
Angel, num dos seus poucos momentos de lucidez, confirma seu pessimismo frente a um realismo de morte e carnificina e Stevie Goodwin nos apresenta uma questão norteadora em relação ao herói norte-americano oriundo dos comics.
Partindo do pressuposto que ele, para Garth Ennis, representa esse ideal, Stevie foi um personagem alienado ao longo da história. Era um personagem que julgava e aconselhava os outros, mas que não tinha noção do que estava realmente acontecendo naquela guerra e de seu inevitável destino.
Sua alienação era tamanha que ele era capaz de escrever um destino imaginário num diário enquanto a companhia emboscou os vietcongues. Apesar de conviver com todas as mazelas da raça humana contida na guerra, mantinha um discurso cristão normativo e até mesmo no momento de sua morte ele é poupado da realidade, ao morrer alucinado e imaginando um final idealizado, após um ataque de napalm.
Assim como Stevie Goodwin, Capitão América é um personagem que aparenta ter saído ileso dos traumas da guerra, a ponto de muitas das suas aventuras nem sequerem ter relação com o tema. A alienação de Capitão América e de outros heróis com o mesmo imaginário social deve-se a não terem vivenciado a mesma guerra de Castle, que para o Justiceiro, ainda não terminou.
Considerações finais
Gerry Conway criou um personagem com uma premissa que o humaniza perante o imaginário social. Realizar justiça com as próprias mãos após perder um ente querido de maneira brutal é algo compreendido, absorvido pelo nosso quotidiano e retratada pela media.
Alguns lampejos de humanidade são apresentados por Garth Ennis. Os diálogos mediados por Stevie, tanto com Frank como com Angel, fazem lembrar-nos que são muito mais que meros soldados ou números cravados numa medalha de identificação.
Vale ressalvar que Ennis é breve nesses diálogos, como se quisesse estabelecer uma pausa ao leitor, ponderar o ponto de vista de cada personagem e depois recomeçar o ritmo frenético de guerra e matança. Um exemplo é o diálogo entre Castle e Stevie após a tentativa de estupro da vietnamita pelos soldados. Segundo Garth Ennis,
"(...) De volta a Valley Forge, Frank revela a Stevie que sabe que ele o viu. Apesar de ter dificuldade em se expressar em palavras, ele fala de sentir a necessidade de punir o homem e corrigir as coisas. Ele não sente a necessidade de ameaçar Stevie, de alguma forma os dois homens sabem que nada mais será dito, O verdadeiro pesadelo para Stevie é sua crença de que atirar na mulher era de alguma forma a idéia de Frank de ajudá-la. (p.97,2016, tradução nossa.)"
Um diálogo que estimula o imaginário e reforça a tese de que o Justiceiro nasce daquela guerra é o que ele trava com uma voz, que o letrista reforça colocando as letras em branco sob um fundo preto. O diálogo se assemelha a um demónio que procura negociar com Frank Castle acerca da sua manutenção enquanto guerreiro dentro de uma guerra eterna.
O primeiro diálogo entre Frank e a voz dá-se quando um militar condecorado vai visitar a base da qual Frank Castle é um dos responsáveis e ameaça fechar a base por desordem organizacional. Frank, que teria sido destacado a dar uma visita guiada ao militar, o coloca de frente a um campo a céu aberto, tornando-se num alvo para os vietcongues, o que resulta na sua morte. Aqui é o primeiro indício de que Frank não quer o fim da guerra e fará de tudo para se manter como um soldado, até mesmo seguir uma voz que parece ser um demónio.
Esse recurso que Garth Ennis utiliza em "The Punisher: Born" é comum no nosso quotidiano, uma vez que a sociedade ocidental vive em configuração social forjada pelo Cristianismo agregado a sincretismos religiosos. Ennis se apropria de personagens psicóticas que alegam ter ouvido vozes para realizar um crime ou um atentado e direcciona isso não somente para um estado de loucura, mas um estado de possessão demoníaca. Ennis introduz esse elemento novo na fábula do Justiceiro e o aproxima do imaginário social de que há pessoas boas, más e até mesmo santificadas e demonizadas.
Esse diálogo vai-se intensificando ao longo da trama e chega ao clímax na parte final da trama, com Frank aceitando o acordo do demónio e ao encontrar sua família, a voz deixa claro que irá cobrar o acordo que Frank fez e que o ajudou a liquidar um pelotão de vietcongues sozinho, uma vez que seu exército estava totalmente liquidado.
Nesse momento os personagens da trama também conhecem o seu final.
Angel, num dos seus poucos momentos de lucidez, confirma seu pessimismo frente a um realismo de morte e carnificina e Stevie Goodwin nos apresenta uma questão norteadora em relação ao herói norte-americano oriundo dos comics.
Partindo do pressuposto que ele, para Garth Ennis, representa esse ideal, Stevie foi um personagem alienado ao longo da história. Era um personagem que julgava e aconselhava os outros, mas que não tinha noção do que estava realmente acontecendo naquela guerra e de seu inevitável destino.
Sua alienação era tamanha que ele era capaz de escrever um destino imaginário num diário enquanto a companhia emboscou os vietcongues. Apesar de conviver com todas as mazelas da raça humana contida na guerra, mantinha um discurso cristão normativo e até mesmo no momento de sua morte ele é poupado da realidade, ao morrer alucinado e imaginando um final idealizado, após um ataque de napalm.
Assim como Stevie Goodwin, Capitão América é um personagem que aparenta ter saído ileso dos traumas da guerra, a ponto de muitas das suas aventuras nem sequerem ter relação com o tema. A alienação de Capitão América e de outros heróis com o mesmo imaginário social deve-se a não terem vivenciado a mesma guerra de Castle, que para o Justiceiro, ainda não terminou.
Considerações finais
Gerry Conway criou um personagem com uma premissa que o humaniza perante o imaginário social. Realizar justiça com as próprias mãos após perder um ente querido de maneira brutal é algo compreendido, absorvido pelo nosso quotidiano e retratada pela media.
Fig.08 FONTE: (ENNIS; ROBERTSON. 2016)
A justiça pelas próprias mãos é exposta pela sociedade por diversos veios. Há pessoas que criam caminhadas, organizações sem fins lucrativos, sites que buscam elementos judiciais que ajudam a investigação policial. Há casos que a sociedade considera justiça, mas que são opostos às ações citadas acima, como pessoas que criam milícias, linchamentos e ações terroristas do ponto de vista social, que são justificadas por seus algozes como justiça pelas próprias mãos.
O Justiceiro de Gerry Conway parte do homem que se quer vingar da morte da sua família, mas essa motivação não explica a guerra declarada do personagem em relação ao crime. A sua vingança pessoal transformou-se numa guerra sem fim e o Justiceiro percorre os limites do diálogo entre o que é justiça e terrorismo nas suas histórias, o que faz com que a origem de Conway não provoque no público contemporâneo a relação de afecto que Conway obteve com os leitores oriundos da revista do Homem-Aranha. Era preciso aprofundar as marcas de sentido na criação do personagem e que justifique a ode a guerra que Justiceiro alimenta em sua trajectória.
Garth Ennis realiza a estrutura comunicacional que o leitor contemporâneo precisa para considerar Justiceiro um personagem coerente, mesmo que para isso ele o tenha desumanizado a ponto de transformá-lo numa máquina de guerra. O autor não busca soluções simples para tal construção, provocando discussões acerca do ideal americano na construção de seus heróis. Ennis apresenta a alienação cultural que significa um personagem como Stevie Goodwin e os horrores que um ser humano pode sofrer em uma guerra.
A origem de Conway é complementada por Ennis, colocando como base de conflito formador do Justiceiro a Guerra do Vietname. De todos os embates americanos, este é considerado o primeiro que o país acabou derrotado e o que a cultura norte-americana fez personagens distorcidos pela guerra.
Se na segunda guerra os personagens eram em sua grande parte alienados e propagandistas, Garth Ennis aproxima Justiceiro de terroristas, genocidas e pessoas que em nome de guerras pessoais distorcem o conceito social de justiça, transformando assim num personagem contemporâneo e controverso, o que faz com que o mesmo obtenha audiência, popularidade e acima de tudo, permanência mediática.
A justiça pelas próprias mãos é exposta pela sociedade por diversos veios. Há pessoas que criam caminhadas, organizações sem fins lucrativos, sites que buscam elementos judiciais que ajudam a investigação policial. Há casos que a sociedade considera justiça, mas que são opostos às ações citadas acima, como pessoas que criam milícias, linchamentos e ações terroristas do ponto de vista social, que são justificadas por seus algozes como justiça pelas próprias mãos.
O Justiceiro de Gerry Conway parte do homem que se quer vingar da morte da sua família, mas essa motivação não explica a guerra declarada do personagem em relação ao crime. A sua vingança pessoal transformou-se numa guerra sem fim e o Justiceiro percorre os limites do diálogo entre o que é justiça e terrorismo nas suas histórias, o que faz com que a origem de Conway não provoque no público contemporâneo a relação de afecto que Conway obteve com os leitores oriundos da revista do Homem-Aranha. Era preciso aprofundar as marcas de sentido na criação do personagem e que justifique a ode a guerra que Justiceiro alimenta em sua trajectória.
Garth Ennis realiza a estrutura comunicacional que o leitor contemporâneo precisa para considerar Justiceiro um personagem coerente, mesmo que para isso ele o tenha desumanizado a ponto de transformá-lo numa máquina de guerra. O autor não busca soluções simples para tal construção, provocando discussões acerca do ideal americano na construção de seus heróis. Ennis apresenta a alienação cultural que significa um personagem como Stevie Goodwin e os horrores que um ser humano pode sofrer em uma guerra.
A origem de Conway é complementada por Ennis, colocando como base de conflito formador do Justiceiro a Guerra do Vietname. De todos os embates americanos, este é considerado o primeiro que o país acabou derrotado e o que a cultura norte-americana fez personagens distorcidos pela guerra.
Se na segunda guerra os personagens eram em sua grande parte alienados e propagandistas, Garth Ennis aproxima Justiceiro de terroristas, genocidas e pessoas que em nome de guerras pessoais distorcem o conceito social de justiça, transformando assim num personagem contemporâneo e controverso, o que faz com que o mesmo obtenha audiência, popularidade e acima de tudo, permanência mediática.
Referências
CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. São Paulo: Pensamento, 2007.
CIMENT, Michel. Conversas com Kubrick. São Paulo: Cosac Naif. 2013
COOGAN, Peter. Superhero: the secret origin of a genre. Austin: Monkebrain, 2006.
ENNIS Garth; ROBERTSON, Darick. The Punisher: Born. New York: Marvel Worldwide, Inc. 2016
COOKE, Darwyn. DC - A nova fronteira. São Paulo: Panini Comics. 2006
KIRBY, Jack. Captain America Comics (1941) # 01. New York: Marvel Unlimeted. Disponível em: http://marvel.com/comics/issue/7849/captain_america_comics_1941_1 Acesso: 23/12/2016
KUBRICK, Stanley. Stanley Kubrick sobre nascido para matar. In: CIMENT, Michel. Conversas com Kubrick. São Paulo: Cosac Naif. 2013
_________________. Nascido para Matar. New York: Warner Bros. Entertainment Inc. 1987
HERR, Michael. Entrevista com Michael Herr. In: CIMENT, Michel. Conversas com Kubrick. São Paulo: Cosac Naif. 2013
MILLER, Frank; MAZZUCCHELLI. Demolidor: A Queda de Murdock. São Paulo: Salvat, 2015.
MOORE, Alan; GIBBONS, Dave. Watchmen. São Paulo: Editora Abril, 1988.
PINHEIRO, Victor Souza. Mito desmascarado: O super- herói americano em Ex-Machina. João Pessoa, 2016. 161p. Dissertação (mestrado em Comunicação) - Programa de Pós graduação em Comunicação - PPGC, Universidade Federal da Paraíba, 2016.
CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. São Paulo: Pensamento, 2007.
CIMENT, Michel. Conversas com Kubrick. São Paulo: Cosac Naif. 2013
COOGAN, Peter. Superhero: the secret origin of a genre. Austin: Monkebrain, 2006.
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KUBRICK, Stanley. Stanley Kubrick sobre nascido para matar. In: CIMENT, Michel. Conversas com Kubrick. São Paulo: Cosac Naif. 2013
_________________. Nascido para Matar. New York: Warner Bros. Entertainment Inc. 1987
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MILLER, Frank; MAZZUCCHELLI. Demolidor: A Queda de Murdock. São Paulo: Salvat, 2015.
MOORE, Alan; GIBBONS, Dave. Watchmen. São Paulo: Editora Abril, 1988.
PINHEIRO, Victor Souza. Mito desmascarado: O super- herói americano em Ex-Machina. João Pessoa, 2016. 161p. Dissertação (mestrado em Comunicação) - Programa de Pós graduação em Comunicação - PPGC, Universidade Federal da Paraíba, 2016.
Autor: Alberto Pessoa
Adaptação e montagem: Sérgio Santos
Autor: Alberto Pessoa
Adaptação e montagem: Sérgio Santos