RESENHA BD
Angola Janga
Marcelo D'Salete
18-03-2019
Ler Angola Janga é levar um tremendo murro no estômago. Algo que não surpreende. Este livro foi concebido para o ser, bem sei. Mas porque é que um discreto leitor português tem de se sentir incomodado com uma banda desenhada que olha para a história brasileira? É que não é só o Brasil que está em análise. Há muito do passado português, das histórias convenientemente esquecidas da colonização do Brasil, nesta obra.
Incomoda, ao nível institucional, recordar que há histórias mais duras e sangrentas do que a narrativa oficial que todos aprendemos na escola, da maravilha que foram os descobrimentos, do dar novos mundos ao mundo. E, de caminho, lucrar com esses mundos, através do comércio de especiarias e bens. Num lado que hoje, felizmente, nos é chocante, também o lucrar com o comércio de seres que não eram vistos como pessoas, sendo valiosos apenas como força de trabalho. O papel português no triângulo atlântico a escravatura entre a Europa, África e Américas não está arredado dos livros de história, mas é abordado como um pormenor incómodo, nuns quantos diagramas para se perceber o conceito, e siga para os feitos portugueses ou o mais agradável comércio de especiarias. É sintomático que, apontando um exemplo banal mas que pelo seu público alvo, os turistas, sublinha ainda mais essa amnésia conveniente, o Lisboa Story Centre se detenha no papel da cidade nos descobrimentos e comércio de especiarias, e deixa de lado o escravo, aquele outro bem perecível comum que também chegava às nossas costas.
Angola Janga incomoda porque mete o dedo na ferida, mostra-nos o papel desempenhado pelos portugueses que colonizaram o Brasil trazendo escravos africanos para trabalhar nos engenhos de açúcar e fazendas, já que os nativos eram considerados inválidos para o trabalho. Marcelo D'Salete coloca rostos na história, e conta-a do lado dos eternos vencidos. Esta não é uma história de esperança e final feliz, apenas da ânsia da liberdade e da promessa nunca cumprida de emancipação.
Ler Angola Janga é levar um tremendo murro no estômago. Algo que não surpreende. Este livro foi concebido para o ser, bem sei. Mas porque é que um discreto leitor português tem de se sentir incomodado com uma banda desenhada que olha para a história brasileira? É que não é só o Brasil que está em análise. Há muito do passado português, das histórias convenientemente esquecidas da colonização do Brasil, nesta obra.
Incomoda, ao nível institucional, recordar que há histórias mais duras e sangrentas do que a narrativa oficial que todos aprendemos na escola, da maravilha que foram os descobrimentos, do dar novos mundos ao mundo. E, de caminho, lucrar com esses mundos, através do comércio de especiarias e bens. Num lado que hoje, felizmente, nos é chocante, também o lucrar com o comércio de seres que não eram vistos como pessoas, sendo valiosos apenas como força de trabalho. O papel português no triângulo atlântico a escravatura entre a Europa, África e Américas não está arredado dos livros de história, mas é abordado como um pormenor incómodo, nuns quantos diagramas para se perceber o conceito, e siga para os feitos portugueses ou o mais agradável comércio de especiarias. É sintomático que, apontando um exemplo banal mas que pelo seu público alvo, os turistas, sublinha ainda mais essa amnésia conveniente, o Lisboa Story Centre se detenha no papel da cidade nos descobrimentos e comércio de especiarias, e deixa de lado o escravo, aquele outro bem perecível comum que também chegava às nossas costas.
Angola Janga incomoda porque mete o dedo na ferida, mostra-nos o papel desempenhado pelos portugueses que colonizaram o Brasil trazendo escravos africanos para trabalhar nos engenhos de açúcar e fazendas, já que os nativos eram considerados inválidos para o trabalho. Marcelo D'Salete coloca rostos na história, e conta-a do lado dos eternos vencidos. Esta não é uma história de esperança e final feliz, apenas da ânsia da liberdade e da promessa nunca cumprida de emancipação.
Marcelo D'Salete centra-se num período muito específico, que nós por cá desconhecemos por completo (pelo menos entre aqueles que não seguem História a nível superior). A Revolta dos Palmares é um período da história do Brasil, mas dos seus tempos coloniais, e por isso parte da nossa história. Temos raízes comuns, estamos intrincados nisto do devir histórico. Escravos fugidos e revoltosos aproveitaram as confusões das guerras entre Portugal e a Holanda para conseguir o impossível. Nas florestas, estabeleceram zona livres. Construíram povoados e alcançaram poder, não meramente territorial e defensivo, mas essencialmente o da ideia que, no meio da escravidão, a liberdade era possível. As autoridades representantes da coroa portuguesa, junto com os latifundiários e donos de engenho não deixaram as coisas ficar assim. Entre perda de território, o perigo do alastrar da ideia de liberdade e a perda de força de trabalho escravo, estes nossos antepassados encontraram razões de sobra para combater os Palmares. Iniciaram um processo de reconquista do território e captura dos antigos escravos, que ao longo de décadas acabará por esmagar a rebelião.
D'Salete coloca rostos nesta história da História. Seguimos o périplo de um escravo fugido para os Palmares que, de acordo com os registos históricos, viria a ser o responsável pela denúncia do seu último grande líder. Mas esta não é uma história de traição. O que se sente na leitura é a elegia do inabalável desejo de liberdade e viver em paz, sempre destroçado por forças externas. É uma história amarga e sem redenção, uma profunda homenagem aos que ousaram libertar-se, e foram esmagados por isso. O estilo visual sublinha este caráter interventivo, de homenagem às vítimas dos vitoriosos. D'Salete mistura realismo com estéticas africanas e nativas brasileiras. O uso de contrastes de cor é muito intenso, sublinhando a vida nos limites vivida pelos personagens. Esta é uma obra intensa, baseada numa fortíssima investigação historiográfica.
Se for o tipo de leitor a quem a mera menção que a história portuguesa tem aspetos mais violentos e tenebrosos do que os da historiografia sanitizada oficial, este livro pode causar problemas cardíacos. Disparo de tensão arterial, apoplexias, ou um choque com a realidade que pode contribuir para mudar ideias. Tendo em conta o momento global em que vivemos, especialmente no Brasil, com o resvalar da opinião pública para correntes de pensamento que embranquecem a violência do passado, num elogio saudosista dos autoritarismos, o publicar esta obra é um ato de coragem. E lê-la, pode ser a diferença entre alinhar com as forças obscuras do passado, ou perceber porque continua a ser importante não temer o olhar crítico.
Artur Coelho
D'Salete coloca rostos nesta história da História. Seguimos o périplo de um escravo fugido para os Palmares que, de acordo com os registos históricos, viria a ser o responsável pela denúncia do seu último grande líder. Mas esta não é uma história de traição. O que se sente na leitura é a elegia do inabalável desejo de liberdade e viver em paz, sempre destroçado por forças externas. É uma história amarga e sem redenção, uma profunda homenagem aos que ousaram libertar-se, e foram esmagados por isso. O estilo visual sublinha este caráter interventivo, de homenagem às vítimas dos vitoriosos. D'Salete mistura realismo com estéticas africanas e nativas brasileiras. O uso de contrastes de cor é muito intenso, sublinhando a vida nos limites vivida pelos personagens. Esta é uma obra intensa, baseada numa fortíssima investigação historiográfica.
Se for o tipo de leitor a quem a mera menção que a história portuguesa tem aspetos mais violentos e tenebrosos do que os da historiografia sanitizada oficial, este livro pode causar problemas cardíacos. Disparo de tensão arterial, apoplexias, ou um choque com a realidade que pode contribuir para mudar ideias. Tendo em conta o momento global em que vivemos, especialmente no Brasil, com o resvalar da opinião pública para correntes de pensamento que embranquecem a violência do passado, num elogio saudosista dos autoritarismos, o publicar esta obra é um ato de coragem. E lê-la, pode ser a diferença entre alinhar com as forças obscuras do passado, ou perceber porque continua a ser importante não temer o olhar crítico.
Artur Coelho
Angola Janga
Autor: Marcelo D'Salete
Editora: Polvo
Ano de edição: 2018
Páginas: 432, capa mole
Preço: 17,40€