RESENHA BD
All Watched Over By Machines Of Loving Grace
09-12-2019
O poema de Richard Brautigan dá o ponto de inspiração para esta antologia. A visão algo mordaz de prados cibernéticos onde mamíferos e computadores vivem em harmonia, das ecologias cibernéticas onde o humano vive livre de dores e labores, acarinhado por máquinas de amável disposição, lança meditações sobre as realidades do nosso mundo cada vez mais digitalizado. Não temos prados cibernéticos, antes os pedregulhos afiados das redes sociais. As máquinas que nos vigiam não são benévolas, ao serviço de interesses que vão da economia ao poder político. A libertação sonhada dos labores é hoje um sonho amargamente distante, num presente de progressiva precarização. Sentimos o poder sedutor da vida no ecrã, ao mesmo tempo que o real se fragmenta e desagrega.
Estas são as visões que transparecem nas experiências visuais de All Watched Over By Machines of Loving Grace. Apesar desta ser uma antologia de banda desenhada, anda longe do convencional nesta área. As suas contribuições são fortemente experimentais. Fogem à BD convencional, fechada em pranchas e vinhetas, e experimentam entre o estilhaçar de estruturas à ilustração encadeada em narrativa difusa. Não surpreende, é essa a marca de edição da Chili Com Carne, que existe como veículo expresso das correntes experimentais e underground da BD portuguesa. Esta antologia é o resultado do concurso com o nome tão "chilicomcarnesco" que se chama "Toma Lá 500 Paus e Faz Uma BD", lançado pela associação.
O poema de Richard Brautigan dá o ponto de inspiração para esta antologia. A visão algo mordaz de prados cibernéticos onde mamíferos e computadores vivem em harmonia, das ecologias cibernéticas onde o humano vive livre de dores e labores, acarinhado por máquinas de amável disposição, lança meditações sobre as realidades do nosso mundo cada vez mais digitalizado. Não temos prados cibernéticos, antes os pedregulhos afiados das redes sociais. As máquinas que nos vigiam não são benévolas, ao serviço de interesses que vão da economia ao poder político. A libertação sonhada dos labores é hoje um sonho amargamente distante, num presente de progressiva precarização. Sentimos o poder sedutor da vida no ecrã, ao mesmo tempo que o real se fragmenta e desagrega.
Estas são as visões que transparecem nas experiências visuais de All Watched Over By Machines of Loving Grace. Apesar desta ser uma antologia de banda desenhada, anda longe do convencional nesta área. As suas contribuições são fortemente experimentais. Fogem à BD convencional, fechada em pranchas e vinhetas, e experimentam entre o estilhaçar de estruturas à ilustração encadeada em narrativa difusa. Não surpreende, é essa a marca de edição da Chili Com Carne, que existe como veículo expresso das correntes experimentais e underground da BD portuguesa. Esta antologia é o resultado do concurso com o nome tão "chilicomcarnesco" que se chama "Toma Lá 500 Paus e Faz Uma BD", lançado pela associação.
A antologia arranca com "Around the World in Eighty Seconds", oitenta dias no romance clássico de Verne, e hoje demoraria menos a cruzar o planeta, mas não tão pouco como oitenta segundos. Exceto se estivermos a falar mapas digitais, que colocam a cartografia de qualquer ponto do planeta na ponta dos dedos. As ilustrações poéticas, recordando a iconografia das viagens vintage, cruzam-se com a modernidade nesta bela meditação de Cláudia Salgueiro sobre as geografias digitais. E não resisto. Um pacote de dados na Internet provavelmente salta de router em router à volta do mundo em milissegundos, viajando entre cabos submarinos, conexões cabladas ou sem fios, ou satélites. Oitenta seria considerado um lag indesculpável.
Não consegui descortinar título à contribuição de João Carola. A história é uma experiência visual interessante, mas desmorona-se ao nível narrativo. Não pelo seu experimentalismo, mas pelo absurdo da sua premissa, de mistura de misticismos terceiro-olhos e hipervigilância digital. Já Cold Echo, a contribuição de Vasco Ruivo prima pela austeridade gráfica. O branco da prancha é o elemento mais evidente enquanto o desenho se dissolve numa subtil trama pontilhista. Sublinha o lado meditativo desta banda desenhada sobre o imediatismo da satisfação dos desejos através da tecnologia. Uma austeridade gráfica similar permeia Bel'air de Champagnac: A report, onde entre os pixels de um ecrã, reflexos de utilizadores que se surpreendem com as escolhas dos algoritmos. Este trabalho de Cátia Serrão medita no como aquilo que vemos e ouvimos, mediado por serviços digitais, reflete escolhas que tentam adivinhar os nossos gostos.
Quebrando o preto e branco do livro, a história sem título de Dois Vês recupera a imagética cyberpunk, de ecrãs e fios que se ligam à cabeça, terminando num registo esotérico. Está mais próximo da ilustração pura do que da banda desenhada. A contribuição de Félix Rodrigues, também sem título, foge completamente às estruturas da BD. Uma forma humana divide-se até se transformar numa rede, uma experiência gráfica que, complementada pela circularidade de um texto esparso, medita na noção de conexão na era digital.
André Pereira contribui com aquela que, estruturalmente, é a mais tradicional das histórias desta antologia. Tem uma estrutura narrativa definida e fio condutor, vinhetas com um visual assombroso. A história olha para a moderação de conteúdos em redes digitais, um trabalho traumático para quem os faz, mas não só. Há um ambiente de futuro próximo, de hiperprecarização e redução do humano aos mínimos económicos. A antologia termina com Follower, de Ana Maçã e Amorim Abiassi, uma história discreta que olha para a falsa sensação de companhia trazida pela proximidade virtual, que nos leva a imaginar relações com outros dos quais apenas conhecemos a persona virtual.
Artur Coelho
Não consegui descortinar título à contribuição de João Carola. A história é uma experiência visual interessante, mas desmorona-se ao nível narrativo. Não pelo seu experimentalismo, mas pelo absurdo da sua premissa, de mistura de misticismos terceiro-olhos e hipervigilância digital. Já Cold Echo, a contribuição de Vasco Ruivo prima pela austeridade gráfica. O branco da prancha é o elemento mais evidente enquanto o desenho se dissolve numa subtil trama pontilhista. Sublinha o lado meditativo desta banda desenhada sobre o imediatismo da satisfação dos desejos através da tecnologia. Uma austeridade gráfica similar permeia Bel'air de Champagnac: A report, onde entre os pixels de um ecrã, reflexos de utilizadores que se surpreendem com as escolhas dos algoritmos. Este trabalho de Cátia Serrão medita no como aquilo que vemos e ouvimos, mediado por serviços digitais, reflete escolhas que tentam adivinhar os nossos gostos.
Quebrando o preto e branco do livro, a história sem título de Dois Vês recupera a imagética cyberpunk, de ecrãs e fios que se ligam à cabeça, terminando num registo esotérico. Está mais próximo da ilustração pura do que da banda desenhada. A contribuição de Félix Rodrigues, também sem título, foge completamente às estruturas da BD. Uma forma humana divide-se até se transformar numa rede, uma experiência gráfica que, complementada pela circularidade de um texto esparso, medita na noção de conexão na era digital.
André Pereira contribui com aquela que, estruturalmente, é a mais tradicional das histórias desta antologia. Tem uma estrutura narrativa definida e fio condutor, vinhetas com um visual assombroso. A história olha para a moderação de conteúdos em redes digitais, um trabalho traumático para quem os faz, mas não só. Há um ambiente de futuro próximo, de hiperprecarização e redução do humano aos mínimos económicos. A antologia termina com Follower, de Ana Maçã e Amorim Abiassi, uma história discreta que olha para a falsa sensação de companhia trazida pela proximidade virtual, que nos leva a imaginar relações com outros dos quais apenas conhecemos a persona virtual.
Artur Coelho
All Watched Over By Machines Of Loving Grace
Autores: Amorim Abiassi Ferreira, Ana Maçã, André Pereira, Cátia Serrão, Cláudia Salgueiro, Dois Vês, Félix Rodrigues, João Carola e Vasco Ruivo.
Editora: Chili Com Carne
Ano de edição: 2019
Páginas: 136 páginas, capa mole
Preço: 10,00€