RESENHA BD
A Viagem Mais Longa, de João Santos e Miguel Jorge
16-10-2021
Confesso que prefiro guardar alguma distância da banda desenhada didática. Em parte, por trauma pessoal e profissional. Pertenço a uma geração que cresceu com os seus professores a desencorajar leituras de banda desenhada, quaisquer que fossem, do Tio Patinhas aos autores francófonos que na altura por cá imperavam, sempre com o comentário de ler "histórias aos quadradinhos" ser um passo decisivo em direção à imbecilidade e iliteracia. Um preconceito que entretanto se esbateu, apesar de, hoje docente, ainda sentir que a BD é vista como uma literatura menor por demasiados dos meus colegas. O que me anima é perceber que os que compreendem o potencial e capacidades da BD estão em crescimento, embora ainda me sinta algo pasmado quando vejo bibliotecas escolares a incluir mangá e comics na sua oferta. Pasmado, no bom sentido.
É trauma, claro, já perceberam, e se tiveram a sorte de apanhar um daqueles raros professores que vos incentivava a ler BD, foram uns sortudos. Das minhas memórias, só recordo que tudo era menorizado, menos Astérix. Esse sim, era considerado uma boa leitura para crianças. Não por ser divertido, ou bem desenhado, mas porque "se aprende sobre os romanos". Reduzir toda a obra de Goscinny e Uderzo a um vale a pena ler só porque se aprende sobre os romanos foi imagem que me ficou para a vida, a reduçáo de todo o espanto, potencial e capacidade da oitava arte ao ser válida apenas como veículo didático. Um ponto de vista de enorme pobreza intelectual, que temo não se ter esbatido por completo.
A outra razão pela qual evito BD didática é... bem, claramente, não sou o seu público-alvo. Este tipo de livros não é concebido para entreter, aprofundar estéticas ou contar histórias arrebatadoras. Tem uma lógica muito clara, onde a narrativa e ilustração se coordenam para transmitir conceitos muito específicos. É, por necessidade, simplista, porque tem de reduzir e condensar ideias complexas para públicos muito jovens. Nós, leitores veteranos, não podemos olhar para estes livros com o mesmo espírito com que discutimos os nossos comics favoritos. Não está, nem pode estar, pensado para o nosso olhar, e se a leitura for complexa, é sinal que algo falhou na concepção.
"Não quis fazer algo ao estilo de José Ruy", observou Miguel Jorge ao mostrar-me o livro no Fórum Fantástico. Foi esse o comentário que me levou a trazer-lhe o livro. Não foi feito no sentido depreciativo, como é óbvio. Ruy é um dos grandes mestres da BD portuguesa, o seu traço marcante. Mas, tem também trejeitos hoje datados, frutos de ser contemporâneo das estruturas de pensamento didático de eras que já passaram. O estilo mais ilustrativo do que narrativo deste autor não é o mais adequado a uma obra que se quer atrativa para um público mais atual.
Confesso que prefiro guardar alguma distância da banda desenhada didática. Em parte, por trauma pessoal e profissional. Pertenço a uma geração que cresceu com os seus professores a desencorajar leituras de banda desenhada, quaisquer que fossem, do Tio Patinhas aos autores francófonos que na altura por cá imperavam, sempre com o comentário de ler "histórias aos quadradinhos" ser um passo decisivo em direção à imbecilidade e iliteracia. Um preconceito que entretanto se esbateu, apesar de, hoje docente, ainda sentir que a BD é vista como uma literatura menor por demasiados dos meus colegas. O que me anima é perceber que os que compreendem o potencial e capacidades da BD estão em crescimento, embora ainda me sinta algo pasmado quando vejo bibliotecas escolares a incluir mangá e comics na sua oferta. Pasmado, no bom sentido.
É trauma, claro, já perceberam, e se tiveram a sorte de apanhar um daqueles raros professores que vos incentivava a ler BD, foram uns sortudos. Das minhas memórias, só recordo que tudo era menorizado, menos Astérix. Esse sim, era considerado uma boa leitura para crianças. Não por ser divertido, ou bem desenhado, mas porque "se aprende sobre os romanos". Reduzir toda a obra de Goscinny e Uderzo a um vale a pena ler só porque se aprende sobre os romanos foi imagem que me ficou para a vida, a reduçáo de todo o espanto, potencial e capacidade da oitava arte ao ser válida apenas como veículo didático. Um ponto de vista de enorme pobreza intelectual, que temo não se ter esbatido por completo.
A outra razão pela qual evito BD didática é... bem, claramente, não sou o seu público-alvo. Este tipo de livros não é concebido para entreter, aprofundar estéticas ou contar histórias arrebatadoras. Tem uma lógica muito clara, onde a narrativa e ilustração se coordenam para transmitir conceitos muito específicos. É, por necessidade, simplista, porque tem de reduzir e condensar ideias complexas para públicos muito jovens. Nós, leitores veteranos, não podemos olhar para estes livros com o mesmo espírito com que discutimos os nossos comics favoritos. Não está, nem pode estar, pensado para o nosso olhar, e se a leitura for complexa, é sinal que algo falhou na concepção.
"Não quis fazer algo ao estilo de José Ruy", observou Miguel Jorge ao mostrar-me o livro no Fórum Fantástico. Foi esse o comentário que me levou a trazer-lhe o livro. Não foi feito no sentido depreciativo, como é óbvio. Ruy é um dos grandes mestres da BD portuguesa, o seu traço marcante. Mas, tem também trejeitos hoje datados, frutos de ser contemporâneo das estruturas de pensamento didático de eras que já passaram. O estilo mais ilustrativo do que narrativo deste autor não é o mais adequado a uma obra que se quer atrativa para um público mais atual.
Terá sido conseguido? Nesta colaboração, Miguel Jorge, que conhecemos como autor e editor da sempre excelente antologia Apocryphus, trabalha em conjunto com o cientista João-Ramalho Santos. O projeto vem do Ciência Viva, articulado com a Estrutura de Missão para o 5 centenário da primeira Viagem de Circum-Navegação. Não se assustem com tanto lado institucional. Por cá, onde o mercado da BD adulta explodiu, o lado infanto-juvenil está menos explorado, e é natural que estas edições didáticas surjam não como conceito de trabalho dos autores, mas como iniciativas institucionais.
Somos levados a acompanhar a aventura de Fernão de Magalhães naquela que foi a primeira viagem de circum-navegação do globo. Uma viagem de expansão científica motivada por fins comerciais, cheia de incertezas e por terras desconhecidas. A história segue num ritmo tranquilo, evitando grandes dramas ou heroicização desmedida do seu principal personagem. Que, curiosamente, quase passa discreto num livro que lhe é dedicado. O objetivo é atingido, falar a viagem de Magalhães de forma factual e histórica, e essencialmente atual, mostrando os processo e enquadramentos, quebrando a antiga visão do herói didático.
Quem conhece o trabalho de Miguel Jorge não se surpreende por encontrar aqui o seu meticuloso trabalho de enquadramento, que alterna entre planos mais de pormenor e planos abrangentes. Joga no contraste entre o intimismo dos diálogos e o largo horizonte das geografias da viagem. Foca-se nos detalhes históricos, embora não de forma demasiado minuciosa - isso iria distrair da lógica do texto. No trabalho de cor, segue uma estética que diria marítima, onde a cor do céu assume preponderância, entre azuis ou laranjas do ocaso. A este nível, confesso que apreciei mais aquela que é a mais deprimente - e violenta, das pranchas, a que retrata a morte de Magalhães. Uma prancha com um enorme trabalho de cor, num livro que por si já depende muito do cuidado com as cores.
Faz parte da natureza de um livro destes passar algo despercebido. É didático, produzido para bibliotecas e escolas, funciona não como veículo da criatividade dos autores mas como meio de comunicação estrito de ideias. Não é por isso que deva ser menor, e creio que o objetivo está cumprido: falar da história, de História, de forma acessível. E, recordando as palavras do Miguel, ou melhor, o seu sentido, de uma forma atual em termos estéticos e de ideário.
Artur Coelho
Somos levados a acompanhar a aventura de Fernão de Magalhães naquela que foi a primeira viagem de circum-navegação do globo. Uma viagem de expansão científica motivada por fins comerciais, cheia de incertezas e por terras desconhecidas. A história segue num ritmo tranquilo, evitando grandes dramas ou heroicização desmedida do seu principal personagem. Que, curiosamente, quase passa discreto num livro que lhe é dedicado. O objetivo é atingido, falar a viagem de Magalhães de forma factual e histórica, e essencialmente atual, mostrando os processo e enquadramentos, quebrando a antiga visão do herói didático.
Quem conhece o trabalho de Miguel Jorge não se surpreende por encontrar aqui o seu meticuloso trabalho de enquadramento, que alterna entre planos mais de pormenor e planos abrangentes. Joga no contraste entre o intimismo dos diálogos e o largo horizonte das geografias da viagem. Foca-se nos detalhes históricos, embora não de forma demasiado minuciosa - isso iria distrair da lógica do texto. No trabalho de cor, segue uma estética que diria marítima, onde a cor do céu assume preponderância, entre azuis ou laranjas do ocaso. A este nível, confesso que apreciei mais aquela que é a mais deprimente - e violenta, das pranchas, a que retrata a morte de Magalhães. Uma prancha com um enorme trabalho de cor, num livro que por si já depende muito do cuidado com as cores.
Faz parte da natureza de um livro destes passar algo despercebido. É didático, produzido para bibliotecas e escolas, funciona não como veículo da criatividade dos autores mas como meio de comunicação estrito de ideias. Não é por isso que deva ser menor, e creio que o objetivo está cumprido: falar da história, de História, de forma acessível. E, recordando as palavras do Miguel, ou melhor, o seu sentido, de uma forma atual em termos estéticos e de ideário.
Artur Coelho
A Viagem Mais Longa
Autor: João Ramalho Santos, Miguel Jorge
Editora: Ciência Viva
Ano de edição: 2020
Páginas: 48 páginas, capa mole
Preço: 10€