RESENHA BD
A Polaroid em Branco, Mário Freitas/Midjourney
05-11-2022
Dos livros que sabia que iria trazer comigo do festival Amadora BD deste ano, este era o que mais curiosidade me despertava, a par com as edições de Jayme Cortez. Por razões diferentes, sou viciado na estética do horror retro, o que explica a obsessão por Cortez. Mas fiquei intrigado com este pequeno livro, mal Mário Freitas o anunciou nas redes sociais como a primeira banda desenhada portuguesa criada com auxílio de inteligência artificial.
Uma nota paralela: o campo da geração de imagens por inteligência artificial não me é estranho, já há alguns anos que no meu contexto profissional experimento com diferentes algoritmos e aplicações de geração de imagem. Desde o augusto Deep Dream (recordam-se dele?) aos primeiros Colabs da Katherine Crowson dos algoritmos VQGAN + Clip, que estão na origem ao Midjourney, e hoje com o Dall-E, implementações locais de Stable Diffusion que ameaçam estourar a placa gráfica do portátil, e uma constelação de apps para dispositivos móveis. Até no TikTok. Como sou professor, interessam-me estratégias que permitam levar os meus pequenos alunos (pensem dez anos) a descobrir e experimentar as tecnologias digitais de ponta dos dias de hoje, e a geração de imagens é uma forma fácil de os fazer arregaçar as mangas e trabalhar diretamente com inteligência artificial. Se perscrutarem o site da iniciativa EU Codeweek, vão encontrar um cenário de aprendizagem já com três anos (ou seja, horrivelmente datado porque esta tecnologia evoluiu de forma exponencial) desenvolvido por mim para que os professores possam abordar esta tecnologia com os seus alunos.
Perdoem-me este desvio pessoal, fora do âmbito da banda desenhada, mas serve para mostrar que não estou a olhar para esta obra sob o prisma de deslumbre tecnológico, fobia com as suas implicações, ou desconhecimento das ferramentas. Compreendo o até que ponto este trabalho é arrojado, e ambicioso, e fiquei desde logo intrigado pela postura do seu autor, que nestas coisas da discussão sobre o impacto e potencial dos geradores de imagem, não só fugiu ao pânico generalizado e ao deslumbre elementar, como soube apropriar-se do algoritmo para o usar a seu proveito (sem bem que, nestas coisas de trabalhar com algoritmos, há sempre um elemento de interação, de diálogo homem-algoritmo, não são ferramentas que apenas se utilizam).
Perscrutem redes sociais e fóruns dedicados à discussão sobre algoritmos de geração de imagens por inteligência artificial (reparem que não estou a usar o termo "criação artística IA", e isso é propositado) e os temas dividem-se razoavelmente em duas grandes áreas: os que temem o potencial desta tecnologia, e os que se deslumbram com ela. Os primeiros temem um mundo desprovido de criatividade humana, onde máquinas geram imagens de alta qualidade a partir de algumas palavras-chave. Um mundo onde ser artista ou ilustrador deixa de ter futuro, porque as máquinas são capazes de criar melhor e mais depressa do que os criadores humanos. É uma perspetiva com algum fundamento, no nosso modelo económico neoliberal não me surpreende se houver por aí alguns editores a salivar com esta tecnologia, a pensar que se podem livrar dos ilustradores para jornais ou revistas, porque um interno a bater texto num algoritmo lhes vai sair mais barato, e boa parte do público nem daria pela diferença (algo que já acontece hoje na produção automatizada de textos para meios digitais, mas isso é outra conversa). A questão é que por assombrosos que possam ser os outputs destes algoritmos, e muitos são de facto excecionais, ter medo deles significa que não se conhece bem a forma como funcionam.
Do lado do deslumbre, o discurso é de fascínio, chegando até à ideia da máquina como uma entidade capaz de criar. Fala-se de revolução, de uma nova forma de arte, de um certo obsoletismo dos meios de expressão mais tradicionais. Falar da capacidade criativa dos algoritmos é um tema interessante, subtópico das ideias sobre inteligência artificial verdadeiramente inteligente e consciente, mas dado o corrente e futuro estado destas tecnologias, esta discussão é a versão high tech do debate sobre o sexo dos anjos. A esmagadora maioria das produções que os mais dedicados a estes algoritmos geram é muito banal e derivativa, representa mais um fascínio com a ferramenta em si do que a procura das suas possibilidades estéticas. A intuição diz-me que quem está neste campo sobrevaloriza as reais capacidades destes algoritmos.
Dos livros que sabia que iria trazer comigo do festival Amadora BD deste ano, este era o que mais curiosidade me despertava, a par com as edições de Jayme Cortez. Por razões diferentes, sou viciado na estética do horror retro, o que explica a obsessão por Cortez. Mas fiquei intrigado com este pequeno livro, mal Mário Freitas o anunciou nas redes sociais como a primeira banda desenhada portuguesa criada com auxílio de inteligência artificial.
Uma nota paralela: o campo da geração de imagens por inteligência artificial não me é estranho, já há alguns anos que no meu contexto profissional experimento com diferentes algoritmos e aplicações de geração de imagem. Desde o augusto Deep Dream (recordam-se dele?) aos primeiros Colabs da Katherine Crowson dos algoritmos VQGAN + Clip, que estão na origem ao Midjourney, e hoje com o Dall-E, implementações locais de Stable Diffusion que ameaçam estourar a placa gráfica do portátil, e uma constelação de apps para dispositivos móveis. Até no TikTok. Como sou professor, interessam-me estratégias que permitam levar os meus pequenos alunos (pensem dez anos) a descobrir e experimentar as tecnologias digitais de ponta dos dias de hoje, e a geração de imagens é uma forma fácil de os fazer arregaçar as mangas e trabalhar diretamente com inteligência artificial. Se perscrutarem o site da iniciativa EU Codeweek, vão encontrar um cenário de aprendizagem já com três anos (ou seja, horrivelmente datado porque esta tecnologia evoluiu de forma exponencial) desenvolvido por mim para que os professores possam abordar esta tecnologia com os seus alunos.
Perdoem-me este desvio pessoal, fora do âmbito da banda desenhada, mas serve para mostrar que não estou a olhar para esta obra sob o prisma de deslumbre tecnológico, fobia com as suas implicações, ou desconhecimento das ferramentas. Compreendo o até que ponto este trabalho é arrojado, e ambicioso, e fiquei desde logo intrigado pela postura do seu autor, que nestas coisas da discussão sobre o impacto e potencial dos geradores de imagem, não só fugiu ao pânico generalizado e ao deslumbre elementar, como soube apropriar-se do algoritmo para o usar a seu proveito (sem bem que, nestas coisas de trabalhar com algoritmos, há sempre um elemento de interação, de diálogo homem-algoritmo, não são ferramentas que apenas se utilizam).
Perscrutem redes sociais e fóruns dedicados à discussão sobre algoritmos de geração de imagens por inteligência artificial (reparem que não estou a usar o termo "criação artística IA", e isso é propositado) e os temas dividem-se razoavelmente em duas grandes áreas: os que temem o potencial desta tecnologia, e os que se deslumbram com ela. Os primeiros temem um mundo desprovido de criatividade humana, onde máquinas geram imagens de alta qualidade a partir de algumas palavras-chave. Um mundo onde ser artista ou ilustrador deixa de ter futuro, porque as máquinas são capazes de criar melhor e mais depressa do que os criadores humanos. É uma perspetiva com algum fundamento, no nosso modelo económico neoliberal não me surpreende se houver por aí alguns editores a salivar com esta tecnologia, a pensar que se podem livrar dos ilustradores para jornais ou revistas, porque um interno a bater texto num algoritmo lhes vai sair mais barato, e boa parte do público nem daria pela diferença (algo que já acontece hoje na produção automatizada de textos para meios digitais, mas isso é outra conversa). A questão é que por assombrosos que possam ser os outputs destes algoritmos, e muitos são de facto excecionais, ter medo deles significa que não se conhece bem a forma como funcionam.
Do lado do deslumbre, o discurso é de fascínio, chegando até à ideia da máquina como uma entidade capaz de criar. Fala-se de revolução, de uma nova forma de arte, de um certo obsoletismo dos meios de expressão mais tradicionais. Falar da capacidade criativa dos algoritmos é um tema interessante, subtópico das ideias sobre inteligência artificial verdadeiramente inteligente e consciente, mas dado o corrente e futuro estado destas tecnologias, esta discussão é a versão high tech do debate sobre o sexo dos anjos. A esmagadora maioria das produções que os mais dedicados a estes algoritmos geram é muito banal e derivativa, representa mais um fascínio com a ferramenta em si do que a procura das suas possibilidades estéticas. A intuição diz-me que quem está neste campo sobrevaloriza as reais capacidades destes algoritmos.
Ao ler A Polaroid em Branco, percebe-se que Mário Freitas compreendeu muito bem as capacidades da ferramenta com que trabalhou. E, por isso, conseguiu chegar a este resultado, um livro notável por ser precursor, mas acima de tudo, uma boa leitura. A história tem um forte tom cómico surreal, acentuando a estética onírica que é uma das características dos outputs do algoritmo que utilizou. E, tal como afirma na nota final do livro, o seu trabalho não se limitou a mandar gerar ilustrações. É preciso experimentar e alterar os parâmetros e palavras que dão as indicações ao algoritmo para que os seus resultados estejam próximos do que se pretende (quem os experimenta depressa percebe que para conseguir o que quer, tem que estabelecer uma espécie de diálogo de constante afinação de prompts). Foi também preciso um trabalho de produção não-automatizado, para que todos os elementos narrativos se tornassem numa obra coerente.
Não é apenas clicar num botão e ficamos com uma obra completa, e sem a imaginação e o trabalho do criador humano, o algoritmo não produziria nada. Ou seja, a geração de imagens por inteligência artificial é apenas o que é: uma ferramenta, poderosa, mas apenas uma ferramenta, mais uma ao dispor dos artistas, ilustradores e criadores. Uma que não os vai substituir, mas pode transformar os seus processos de trabalho. O livro A Polaroid em Branco é um excelente exemplo disso.
O corrente estado da arte nesta tecnologia mostra muito bem as suas limitações. Basta olhar para a capa do livro para se perceber qual o algoritmo que Freitas usou, o esitlo gráfico é o típico das imagens geradas pelo Midjourney. Se Freitas tivesse utilizado Dall-E, Nightcafe, Wombo, ou implementações Stable Diffusion (hey, é um bom desafio, instalar um GUI SD, e não só se deixa de depender do sistema de créditos dos serviços online, como também das limitações ao tipo de palavras que se usam e imagens que geram), teria tido resultados visualmente muito diferentes, e a estética do livro seria outra. Isso advém da forma como esta tecnologia funciona, do tipo de imagens que sustenta os modelos de treino que alimentam as redes adversariais generativas destes algoritmos. Alguns destes algoritmos permitem-nos ver o processo de construção de imagens em tempo real, e se por um lado é um fascínio ver a concretização incremental de uma imagem realista à medida que o algoritmo adversarial reduz as probabilidades do espaço latente, introduzindo progressiva coerência no ruído gaussiano que forma a imagem de output inicial, por outro depressa se percebe a influência dos modelos de treino na estética específica resultante, e também na forma como ele nos dá o que esperamos, ou não o consegue fazer.
A Polaroid em Branco é um brilhante exemplo de como a inteligência artificial pode ser uma excelente ferramenta ao serviço da criatividade humana. Amplia as capacidades do criador, permite novas formas de criação em que este entra numa espécie de diálogo com a máquina, uma vez que o uso do algoritmo vai em si fazer evoluir as suas ideias. E é, acima de tudo, uma boa história, divertida e onírica, com qualidade literária para além do seu caráter experimental.
Artur Coelho
Não é apenas clicar num botão e ficamos com uma obra completa, e sem a imaginação e o trabalho do criador humano, o algoritmo não produziria nada. Ou seja, a geração de imagens por inteligência artificial é apenas o que é: uma ferramenta, poderosa, mas apenas uma ferramenta, mais uma ao dispor dos artistas, ilustradores e criadores. Uma que não os vai substituir, mas pode transformar os seus processos de trabalho. O livro A Polaroid em Branco é um excelente exemplo disso.
O corrente estado da arte nesta tecnologia mostra muito bem as suas limitações. Basta olhar para a capa do livro para se perceber qual o algoritmo que Freitas usou, o esitlo gráfico é o típico das imagens geradas pelo Midjourney. Se Freitas tivesse utilizado Dall-E, Nightcafe, Wombo, ou implementações Stable Diffusion (hey, é um bom desafio, instalar um GUI SD, e não só se deixa de depender do sistema de créditos dos serviços online, como também das limitações ao tipo de palavras que se usam e imagens que geram), teria tido resultados visualmente muito diferentes, e a estética do livro seria outra. Isso advém da forma como esta tecnologia funciona, do tipo de imagens que sustenta os modelos de treino que alimentam as redes adversariais generativas destes algoritmos. Alguns destes algoritmos permitem-nos ver o processo de construção de imagens em tempo real, e se por um lado é um fascínio ver a concretização incremental de uma imagem realista à medida que o algoritmo adversarial reduz as probabilidades do espaço latente, introduzindo progressiva coerência no ruído gaussiano que forma a imagem de output inicial, por outro depressa se percebe a influência dos modelos de treino na estética específica resultante, e também na forma como ele nos dá o que esperamos, ou não o consegue fazer.
A Polaroid em Branco é um brilhante exemplo de como a inteligência artificial pode ser uma excelente ferramenta ao serviço da criatividade humana. Amplia as capacidades do criador, permite novas formas de criação em que este entra numa espécie de diálogo com a máquina, uma vez que o uso do algoritmo vai em si fazer evoluir as suas ideias. E é, acima de tudo, uma boa história, divertida e onírica, com qualidade literária para além do seu caráter experimental.
Artur Coelho
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A Polaroid em Branco
Autor: Mário Freitas
Editora: Kingpin Books
Ano de edição: 2022
Páginas: 16 páginas, capa mole
Preço: 4€
A Polaroid em Branco
Autor: Mário Freitas
Editora: Kingpin Books
Ano de edição: 2022
Páginas: 16 páginas, capa mole
Preço: 4€