4 BANDAS DESENHADAS, 5 PAIS
2016-03-19
Fui desafiado a escrever uma recensão crítica. Foi-me sugerido escrever sobre as minhas bandas desenhadas preferidas. Quem me conhece sabe que a minha escolha iria incidir em BD de autor, biográficas ou autobiográficas. Sendo fiel a mim mesmo, a minha escolha recaiu sobre diferentes romances gráficos, os quais vou nomear de seguida. De algum modo, foram as minhas leituras preferidas nestes últimos tempos, e as razões são muitas! Maus, Fun Home, Arte de voar e Diário do meu Pai. Vou apresentar cada uma pela ordem que as li, assim como acrescentar no final uma curiosidade comum a todas elas.
Fui desafiado a escrever uma recensão crítica. Foi-me sugerido escrever sobre as minhas bandas desenhadas preferidas. Quem me conhece sabe que a minha escolha iria incidir em BD de autor, biográficas ou autobiográficas. Sendo fiel a mim mesmo, a minha escolha recaiu sobre diferentes romances gráficos, os quais vou nomear de seguida. De algum modo, foram as minhas leituras preferidas nestes últimos tempos, e as razões são muitas! Maus, Fun Home, Arte de voar e Diário do meu Pai. Vou apresentar cada uma pela ordem que as li, assim como acrescentar no final uma curiosidade comum a todas elas.
Maus é daquelas obras que pensamos: ‘porque não fui eu que a criei?’. A inveja nestas situações não pode ser considerada pecado! Entretanto vi e li mais histórias do mesmo autor e não há dúvida, temos que nos render à evidência: o senhor é um génio! Maus é uma Banda Desenhada a preto e branco onde as personagens são animais, e relata-nos uma parte terrível da história do nosso passado recente. Senti, como nunca, a crueldade que o ser humano pode ter relativamente ao outro, o diferente.
Um livro duro, verdadeiro, frontal e pessoal que nos relata o antissemitismo Nazista, sob a figura principal desse ódio gratuito e irracional que todos nós conhecemos: Adolf Hitler. Art Spiegelman, autor desta obra, coloca na primeira página do livro uma frase que permite revelar um pouco do cenário que o livro nos dá: “Os judeus constituem sem dúvida uma raça mas não são humanos. Adolf Hitler.” (Spiegelman, 2001, p3). Por considerar o livro uma referência, recomendei-o a uns amigos, mas pela dureza que tudo aquilo representa, disseram-me que não estavam preparados para tal leitura.
Art Spiegelman narra a história do seu pai, sobrevivente judeu que sofreu a segunda guerra mundial e esteve preso em Auschwitz, campo de concentração que serviu de autêntico palco de chacina dos Judeus. Para além deste relato do passado, como se se tratasse de um diário pessoal, é um testemunho, um documento da história.
O livro apresenta-nos dois tempos distintos: o durante a guerra contada, recordada pelo pai, e o pós-guerra, ou seja, o momento presente. Há um recurso constante de analepses e prolepses na forma como a história é contada. No plano pessoal, esta banda desenhada mostra-nos o relacionamento complicado do autor com o seu pai, e como os danos da guerra ecoam ainda pelas gerações da sua família. Um livro inteligentemente criado onde há pontos de pura mestria e também de ironia. Dando um exemplo, na página 41 da versão portuguesa (editora Difel, volume 2) vemos Art Spiegelman sentado junto ao seu estirador usando uma máscara com figura de rato (judeu), escondido atrás de um cigarro, e um marcador para começar o segundo volume de “Maus”. Nessas vinhetas, fala-nos do sucesso do primeiro volume de “Maus” e do seu mediatismo.
Nas quatro primeiras, vemos moscas a voar à sua volta, percebendo na quinta e última vinheta, a razão de estarem ali presentes. Num cenário macabro, chocante ou surrealista, percebemos que Art Spielgelman está com o seu estirador no topo de corpos de ratos amontoados deixando um cheiro putrefacto dos mortos. Na sua fala revela estar deprimido. Portador de uma “mensagem”, os media querem-no catalogar. Rodeado e afogado em perguntas e propostas, o autor entra num colapso total, chorando, e, desesperado, grita pela mãe. Vemo-lo ficar mais pequeno na sua cadeira. Pequeno como uma criança, e não como um adulto responsável, brevemente pai. Um retrato íntimo e psicológico que nos faz questionar: O que é sobreviver?
Agora apresento uma segunda banda desenhada, que, ao invés da primeira, aborda a problemática de não se querer mais viver. Muitas vezes dizemos que a nossa vida podia ser uma novela. Alison Bechdel, abriu a porta da sua intimidade e através da banda desenhada apresenta “Fun Home”, uma obra autobiográfica.
Lendo a obra, fui sentindo uma grande proximidade com a personagem, ao ponto de pensar que a conhecia, só não conseguia falar com ela. Revela-nos, sem receios, as suas descobertas, as suas emoções, os seus pensamentos, as suas leituras, e vamos apreendendo a sua orientação sexual, os caminhos que quer trilhar. Em poucas páginas, estamos lado a lado de uma menina que se faz mulher, cuja evolução nos mostra o desenvolvimento de uma determinada identidade. Poderia recomendar esta obra a adolescentes, admitindo que seria talvez controverso, mas retrata uma realidade sem floreados, tal como é.
Creio que ajudaria muitas adolescentes na descoberta do seu “eu”, funcionando como espelho das suas realidades. Todavia, talvez ainda tabu para pais mais reservados ou retrógrados.
Para além de irmos conhecer a Alison Bechdel, esta autora fala do seu pai e da relação que tinha com ele. O pai é uma figura que marcou bastante a personagem, um pai diferente dos outros pais fechado num pequeno mundo, numa casa-funerária, de onde sai o nome da obra e também de um trocadilho com a palavra “Fun”, divertido.
Alison partilha connosco a sua visão do pai, conta-nos o seu modo de vida, os seus gostos, a sua maneira de ser. Revela-nos a homossexualidade do pai, a sua surpresa perante ela, e a estranha morte que teve. Alison não sabe lidar com ela, uma morte que aparenta ter sido um suicídio ou então um acidente estúpido. Havia entre eles algum distanciamento e um amor reservado, e não a figura do “papá” de proximidade e de carinho, embora Alison sentisse por ele uma certa admiração. A relação desconfortante entre pai e filha, baseada nas aparências, em não mostrar fraquezas, é recíproca, vivida por ambas as partes.
Nas primeiras páginas, Alison Bechdel brindou-nos com um momento raro e dos mais encantadores da obra. Uma saudade de menina pequena: “Tal como muitos pais, o meu deixava-me às vezes brincar ao «avião» quando me erguia, todo o meu peso caía num ponto entre os seus pés e o meu estômago. O desconforto valia bem o raro contacto físico, e seguramente o momento de equilíbrio perfeito quando pairava sobre ele. No circo, os números de acrobacia em que uma pessoa se deita no chão equilibrando outra são chamados «jogos de Ícaro». Tendo em conta o destino de Ícaro depois de ignorar os conselhos do pai e de voar tão perto do sol que as suas asas derreteram, deve ser uma espécie de humor negro. Na nossa versão particular desta relação mítica, não fui eu mas sim o meu pai quem se despenhou do céu”. Uma comédia-trágica familiar em que a fragilidade se apoderou de todos os seus aspetos na demanda de continuar a voar mais alto.
Se em “Fun Home” o pai de Alison busca sempre voar até cair e morrer, deixando a dúvida do suicídio, na banda desenhada “Arte de voar”, temos a revelação indubitável de um suicídio. O facto de nunca ter voado e a inadaptação para tal, foi motivação para o personagem voar, por breves instantes, e saber o que é viver, antes de cair. Das quatro bandas desenhadas que apresento aqui, esta foi a que emocionalmente mais me deixou perturbado, de boca aberta e com aquele nó na garganta, que nos faz questionar sobre o sentido da vida. Acaba por ser uma história arrepiante.
Nós somos tão pequenos. O ser humano é realmente uma coisa esquisita, que pelas leis gravitacionais está numa vida agarrado a um chão do qual dificilmente pode escapar e nele viverá para o bem ou para o mal, para o que lhe é “destinado”. Não costumo usar este termo, mas o tempo prevalece sobre as nossas vontades, sobre o que desejamos fazer. As coisas acontecem ou não acontecem, apesar de pensarmos positivamente e batalhar contra as adversidades. Somos perdedores. Estava destinado. Foi como fiquei ao acabar de ler esta obra. Pensar o porquê? Ser de alguma forma livre, tirar os pés da terra, não é um motivo suficiente para uma pessoa querer voar? Pensar o porquê de uma pessoa com 91 anos, depois de uma vida difícil, passando por duas guerras, resolver suicidar-se, precisamente quando tudo parecia estar, enfim, a correr bem?
O filho conta-nos como foi, pois ele sabe como o pai morreu. Refere-se ao filho assim nas primeiras páginas da obra: “Estive sempre nele porque um pai é feito de todos os seus potenciais filhos…e eu sou o único filho que foi possível o meu pai ter… Descendo do meu pai, sou o seu prolongamento e, mesmo antes de ter nascido, já participava, como potencial genético, de tudo o que lhe acontecia… Por isso sei como morreu… E também como viveu…”. António Altarriba, autor desta narrativa, entra no corpo do pai para dar a si mesmo uma explicação do seu suicídio. Esta obra põe-nos em constante questionamento. Estar a viver no mundo é querer felicidade, mas sem ela, o que somos nós? Seja na arte de nadar, na arte de rastejar ou na arte de andar, nas ideologias, crenças/convicções e pensamentos, todo o ser procura a felicidade alcançável através da liberdade. E, finalmente, o pai alcançou a liberdade por breves instantes.
Por sua vez, a liberdade alcança-se através da mudança, da aquisição de conhecimento, através do outro. Os seres tornam-se mais autónomos, mais fortes, mais seguros, alcançando a liberdade por consciencializarem-se do seu lugar no mundo, ser alguém no mundo. Porém, ser alguém com voz própria, será, necessariamente, sinónimo de felicidade?
Finalmente, a última das quatro bandas desenhadas apresenta-se no estilo japonês mangá, mais especificamente, no movimento gekigá, e intitula-se “O diário do meu pai”. Retomando a problemática da liberdade e felicidade, da adquisição de outras experiências e conhecimentos, e da relação com o outro, esta novela gráfica retrata o afastamento do ninho, a fuga às asas dos pais. Digamos que afastar-se pode ser um mal necessário para crescer. Mas uma vez crescidos, não podemos esquecer de onde vimos, das nossas origens.
Jiro Taniguchi fala-nos disso. Ao contrário das bandas desenhadas anteriores que se apresentam unicamente como biográficas e/ou autobiográficas, esta narrativa tem algumas referências de âmbito autobiográfico, mas também de âmbito ficcional. Na vida real, o telefonema de um amigo de infância embriagado reclamando quando é que este voltava para tomarem um copo juntos, depois de ter falado com a sua mãe, e esta lhe ter revelado estar há quinze anos sem que filho tivesse voltado, é mote para a consciencialização do tempo que o autor esteve afastado da sua terra natal. Apesar disso, na ficção, o regresso à terra natal não acontece pelo amigo, mas para ir ao funeral do pai. Porquê este afastamento? Porque nunca mais voltou? Na realidade, o autor confessa ter sido por preguiça, e por estar sempre ocupado.
Após um fogo que destruíra a cidade de Tottori, deu-se uma destruição maior, a destruição da sua família com a saída de casa da mãe, e o abandono dos dois filhos deixados aos cuidados do marido. Yoichi, o filho mais novo, culpara toda a vida o pai dessa tragédia familiar, acusando-o de nunca estar disponível, sempre a trabalhar, e que a mãe, naturalmente, se cansara. Acompanhamos esse rancor do narrador ao longo do seu crescimento e idade adulta. Cria-se, assim, uma barreira e um distanciamento de difícil retrocesso. Na página 32, confessa: “Assim deitado no caixão, o meu pai pareceu-me muito mais pequeno que da última vez que o tinha visto. De repente, fiquei com remorsos de não ter estado presente quando morreu. (… ) O meu pai… desde a minha infância que sempre guardei um ressentimento em relação a ele… e agora, está morto”.
A história é toda narrada na primeira pessoa, e nas entrelinhas das outras personagens é-nos revelado o quotidiano normal de qualquer mortal. É precisamente através destas personagens que Yoichi redescobre o pai, e perceciona um outro pai totalmente desconhecido para ele. Esses momentos são particularmente fortes, comoventes, belos e pertencentes à esfera íntima e pessoal.
Numa simbiose perfeita entre a narrativa e o desenho, o autor relata: “Todas aquelas facetas diferentes do meu pai que me tinham sido reveladas nessa noite me vinham à memória. Todo o sofrimento do pai que tinha desconhecido… também percebemos a sua bondade. A sua bondade grande demais. Comecei a chorar, as lágrimas corriam-me pela cara.” (pag.254). Uma obra desta sensibilidade estética e emocional só poderia vir de um autor como Jiro Taniguchi. Estar tão longe quando se pode estar tão perto, também podendo estar tão perto estando longe. Que distância é essa? A distância afetiva que dois seres podem ter, pai e filho, filho e pai.
Jiro Taniguchi fala-nos disso. Ao contrário das bandas desenhadas anteriores que se apresentam unicamente como biográficas e/ou autobiográficas, esta narrativa tem algumas referências de âmbito autobiográfico, mas também de âmbito ficcional. Na vida real, o telefonema de um amigo de infância embriagado reclamando quando é que este voltava para tomarem um copo juntos, depois de ter falado com a sua mãe, e esta lhe ter revelado estar há quinze anos sem que filho tivesse voltado, é mote para a consciencialização do tempo que o autor esteve afastado da sua terra natal. Apesar disso, na ficção, o regresso à terra natal não acontece pelo amigo, mas para ir ao funeral do pai. Porquê este afastamento? Porque nunca mais voltou? Na realidade, o autor confessa ter sido por preguiça, e por estar sempre ocupado.
Após um fogo que destruíra a cidade de Tottori, deu-se uma destruição maior, a destruição da sua família com a saída de casa da mãe, e o abandono dos dois filhos deixados aos cuidados do marido. Yoichi, o filho mais novo, culpara toda a vida o pai dessa tragédia familiar, acusando-o de nunca estar disponível, sempre a trabalhar, e que a mãe, naturalmente, se cansara. Acompanhamos esse rancor do narrador ao longo do seu crescimento e idade adulta. Cria-se, assim, uma barreira e um distanciamento de difícil retrocesso. Na página 32, confessa: “Assim deitado no caixão, o meu pai pareceu-me muito mais pequeno que da última vez que o tinha visto. De repente, fiquei com remorsos de não ter estado presente quando morreu. (… ) O meu pai… desde a minha infância que sempre guardei um ressentimento em relação a ele… e agora, está morto”.
A história é toda narrada na primeira pessoa, e nas entrelinhas das outras personagens é-nos revelado o quotidiano normal de qualquer mortal. É precisamente através destas personagens que Yoichi redescobre o pai, e perceciona um outro pai totalmente desconhecido para ele. Esses momentos são particularmente fortes, comoventes, belos e pertencentes à esfera íntima e pessoal.
Numa simbiose perfeita entre a narrativa e o desenho, o autor relata: “Todas aquelas facetas diferentes do meu pai que me tinham sido reveladas nessa noite me vinham à memória. Todo o sofrimento do pai que tinha desconhecido… também percebemos a sua bondade. A sua bondade grande demais. Comecei a chorar, as lágrimas corriam-me pela cara.” (pag.254). Uma obra desta sensibilidade estética e emocional só poderia vir de um autor como Jiro Taniguchi. Estar tão longe quando se pode estar tão perto, também podendo estar tão perto estando longe. Que distância é essa? A distância afetiva que dois seres podem ter, pai e filho, filho e pai.
Relembro que esta escolha recai sobre as minhas bandas desenhadas preferidas lidas até agora. Será mero acaso, serendipidade, todas elas terem em comum a figura do pai representada? Haverá uma mensagem subliminar por detrás desta atracção? Nada é por acaso, tinha de acontecer? Pensando no meu pai, ele também seria uma personagem com uma história de vida ideal para um romance gráfico.
Será algo a pensar seriamente? E porque não? Certamente quererá dizer isso. Começo a pensar num título? O pai já existe e é meu, falta é a banda desenhada!
Hoje é o dia do pai.
Será algo a pensar seriamente? E porque não? Certamente quererá dizer isso. Começo a pensar num título? O pai já existe e é meu, falta é a banda desenhada!
Hoje é o dia do pai.
Autor: Pedro Ferreira