O JUSTICEIRO DE GARTH ENNIS
2017-02-28
Qual é o conceito de justiça e ética na nossa sociedade? O personagem Justiceiro pode ser considerado uma representação social de indivíduos e comunidades que visam fazer justiça com as próprias mãos?
Neste artigo iremos analisar como o autor Garth Ennis retrata esse indivíduo na reconfiguração do anti-herói Justiceiro.
A construção do personagem Justiceiro remete à temática trágica grega, da qual por meio da hibris, ou seja, do desequilíbrio de uma situação traumática, resulta um momento catártico de transformação do personagem e uma nova jornada na vida desse indivíduo. Steven Grant, um dos principais escritores do Justiceiro na década 1990, disserta acerca da jornada do personagem:
"No caso de Frank Castle, o personagem é um veterano da Guerra do Vietname, da qual retorna como herói e militar condecorado para os Estados Unidos. Frank é um militar que admira e exalta o grande ícone militar de seu país, Steve Rogers, vulgo Capitão América, mas diferente da sentinela esmeralda, que actuou de forma vitoriosa na Segunda Guerra Mundial, ele acaba sendo talhado nos horrores da Guerra do Vietname, da qual sai derrotado. Na carnificina e massacre entre pessoas que se odeiam por questões ideológicas e políticas dos seus respectivos países, Frank descobre o pior do ser humano em si mesmo, ao lutar pela sua pátria com tudo aquilo que só uma guerra pode oferecer a um ser humano. Essa origem da construção psicológica de Frank Castle afasta-o do ideal heróico construído em torno do Capitão América nos moldes descrito por Joseph Campbell.
Criado em 1974 por Gerry Conway, Ross Andru e John Romita, o personagem não é baseado na criação mítica de um Super-Homem, nem obtém poderes por meio de uma experiência ou tão pouco nasceu com algum tipo de poder. Frank Castle é um ser humano talhado nas agruras da sua trágica história de vida. Conway nem sequer utilizou outro super-herói como referência criativa para o Justiceiro. De acordo com o autor:
(...) Eu era fascinado pelo personagem Executor, de Don Pendleton, que era bastante popular na época, e queria fazer algo inspirador na época, e queria fazer algo inspirado naquilo, ainda que não uma cópia. E, enquanto estava escrevendo a trama do Chacal, apareceu a oportunidade de um personagem que fosse usado pelo Chacal para tornar a vida do Homem Aranha miserável. O justiceiro se encaixava. (CONWAY, 2015, p.143)
Qual é o conceito de justiça e ética na nossa sociedade? O personagem Justiceiro pode ser considerado uma representação social de indivíduos e comunidades que visam fazer justiça com as próprias mãos?
Neste artigo iremos analisar como o autor Garth Ennis retrata esse indivíduo na reconfiguração do anti-herói Justiceiro.
A construção do personagem Justiceiro remete à temática trágica grega, da qual por meio da hibris, ou seja, do desequilíbrio de uma situação traumática, resulta um momento catártico de transformação do personagem e uma nova jornada na vida desse indivíduo. Steven Grant, um dos principais escritores do Justiceiro na década 1990, disserta acerca da jornada do personagem:
"No caso de Frank Castle, o personagem é um veterano da Guerra do Vietname, da qual retorna como herói e militar condecorado para os Estados Unidos. Frank é um militar que admira e exalta o grande ícone militar de seu país, Steve Rogers, vulgo Capitão América, mas diferente da sentinela esmeralda, que actuou de forma vitoriosa na Segunda Guerra Mundial, ele acaba sendo talhado nos horrores da Guerra do Vietname, da qual sai derrotado. Na carnificina e massacre entre pessoas que se odeiam por questões ideológicas e políticas dos seus respectivos países, Frank descobre o pior do ser humano em si mesmo, ao lutar pela sua pátria com tudo aquilo que só uma guerra pode oferecer a um ser humano. Essa origem da construção psicológica de Frank Castle afasta-o do ideal heróico construído em torno do Capitão América nos moldes descrito por Joseph Campbell.
Criado em 1974 por Gerry Conway, Ross Andru e John Romita, o personagem não é baseado na criação mítica de um Super-Homem, nem obtém poderes por meio de uma experiência ou tão pouco nasceu com algum tipo de poder. Frank Castle é um ser humano talhado nas agruras da sua trágica história de vida. Conway nem sequer utilizou outro super-herói como referência criativa para o Justiceiro. De acordo com o autor:
(...) Eu era fascinado pelo personagem Executor, de Don Pendleton, que era bastante popular na época, e queria fazer algo inspirador na época, e queria fazer algo inspirado naquilo, ainda que não uma cópia. E, enquanto estava escrevendo a trama do Chacal, apareceu a oportunidade de um personagem que fosse usado pelo Chacal para tornar a vida do Homem Aranha miserável. O justiceiro se encaixava. (CONWAY, 2015, p.143)
Ao compararmos com outro vigilante, o Batman, podemos compreender que ambos tiveram perdas semelhantes (Batman perdeu os pais ainda criança, vítima de um assalto). Mas a visão de mundo de Batman foi construída pela figura paterna do mordomo Alfred, o que faz com que o Homem-Morcego ultrapasse linhas civis, mas não cause a morte de ninguém, inocente ou culpado. No caso do Justiceiro, a sua concepção de mundo não foi criada com compaixão ou amor romântico, é um homem que perde absolutamente tudo ao redor e entende que é um ser solitário numa guerra que ele não pode vencer.
O ponto de vista que o Justiceiro tem do mundo é simples: há pessoas boas e pessoas ruins, e as ruins têm de morrer. (...) Alguns de nós podem ter problemas com isso, reconhecendo que há tonalidades de cinza nessa área. Quase toda a pessoa boa pode agir de modo destrutivo às vezes, e até mesmo o pior verme pode possuir uma qualidade redentora. Mas acho que, na visão de mundo do Justiceiro, a redenção não existe. Acho que ele é um tipo calvinista. (CONWAY, 2015, p.143).
Pai de um casal e marido dedicado, Frank encontra na família uma chance de redenção e fuga da solidão e, assim, restabelecer a ordem que o trauma da guerra havia tirado ao personagem. Porém, numa infeliz coincidência do destino, a família Castle viu.se envolvida num tiroteio entre grupos mafiosos num piquenique em Central Park, que resultou numa chacina, com duas crianças mortas e uma mulher, respectivos filhos e esposa de Frank. Se a guerra apresenta uma situação traumática a Frank Castle, dentro de seu ideal patriótico norte-americano, podemos considerar que a legitimidade da qual Castle acreditava como soldado e a volta para casa restabeleceu a ordem, mas a chacina da sua família coloca-o numa situação de desordem em que a única busca possível de redenção é a vingança. Sozinho no seu quotidiano e sem a família para sustentar a possibilidade de afastá-lo do código de guerra, Frank Castle volta a fazer a única coisa que sabe fazer, que é entrar em guerra.
Dessa vez, por uma bandeira própria em forma de uma caveira, em solo Americano e com inimigos escolhidos, na sua maioria mafiosos italianos, terroristas e traficantes, pelos quais não há misericórdia ou prisioneiros. Frank é juiz e executor. Ele é o Justiceiro. O Justiceiro é um anti-herói clássico e contemporâneo, uma vez que o seu trauma é bastante semelhante a de várias pessoas, vítimas das violência. Podemos citar como exemplo Masataka Ota, pai de Ives Ota, uma criança de 8 anos, sequestrada e assassinada por três bandidos. A tragédia o transformou num herói trágico da vida real. Masataka Ota tornou-se conhecido por ir à prisão, perdoar os assassinos do seu filho e ainda atua como político nas lutas sociais contra a violência.
O ponto de vista que o Justiceiro tem do mundo é simples: há pessoas boas e pessoas ruins, e as ruins têm de morrer. (...) Alguns de nós podem ter problemas com isso, reconhecendo que há tonalidades de cinza nessa área. Quase toda a pessoa boa pode agir de modo destrutivo às vezes, e até mesmo o pior verme pode possuir uma qualidade redentora. Mas acho que, na visão de mundo do Justiceiro, a redenção não existe. Acho que ele é um tipo calvinista. (CONWAY, 2015, p.143).
Pai de um casal e marido dedicado, Frank encontra na família uma chance de redenção e fuga da solidão e, assim, restabelecer a ordem que o trauma da guerra havia tirado ao personagem. Porém, numa infeliz coincidência do destino, a família Castle viu.se envolvida num tiroteio entre grupos mafiosos num piquenique em Central Park, que resultou numa chacina, com duas crianças mortas e uma mulher, respectivos filhos e esposa de Frank. Se a guerra apresenta uma situação traumática a Frank Castle, dentro de seu ideal patriótico norte-americano, podemos considerar que a legitimidade da qual Castle acreditava como soldado e a volta para casa restabeleceu a ordem, mas a chacina da sua família coloca-o numa situação de desordem em que a única busca possível de redenção é a vingança. Sozinho no seu quotidiano e sem a família para sustentar a possibilidade de afastá-lo do código de guerra, Frank Castle volta a fazer a única coisa que sabe fazer, que é entrar em guerra.
Dessa vez, por uma bandeira própria em forma de uma caveira, em solo Americano e com inimigos escolhidos, na sua maioria mafiosos italianos, terroristas e traficantes, pelos quais não há misericórdia ou prisioneiros. Frank é juiz e executor. Ele é o Justiceiro. O Justiceiro é um anti-herói clássico e contemporâneo, uma vez que o seu trauma é bastante semelhante a de várias pessoas, vítimas das violência. Podemos citar como exemplo Masataka Ota, pai de Ives Ota, uma criança de 8 anos, sequestrada e assassinada por três bandidos. A tragédia o transformou num herói trágico da vida real. Masataka Ota tornou-se conhecido por ir à prisão, perdoar os assassinos do seu filho e ainda atua como político nas lutas sociais contra a violência.
Ao mesmo tempo, uma parcela significativa da sociedade entende que o perdão é demais para aquele que causa uma tragédia para o próximo. Um exemplo foi o que ocorreu no Rio de Janeiro em 2014. Um jovem entre 16 e 18 anos praticava furtos na Av. Rui Barbosa, no Flamengo, Zona Sul da cidade, e foi surpreendido por um grupo de três homens que se denominavam como Justiceiros de Moto. Antes de conseguir esboçar alguma reacção, o rapaz foi agredido com pauladas na cabeça, teve sua roupa rasgada e foi preso a um poste por uma barra de ferro no pescoço. Garth Ennis brinca com diversos elementos universais da consciência humana por meio dos seus personagens, dadas as limitações de uma publicação impressa e mensal de histórias em quadrinhos, como foi o caso da obra "Bem-vindo de Volta Frank", uma minissérie de 12 edições. O autor apresenta o discurso hipócrita do ser humano ao apresentar logo no início da trama um processo de chantagem que o prefeito e o comissário sofrem por serem um casal e a consequência dessa ação, o que apresenta consequências despercebidas ao leitor ao longo da trama, mas que resulta em finais inesperados.
O chefe dele não pode tocá-lo e, perto do fim da história, esse perdedor inveterado terá levantado evidências suficientes de corrupção para dar um golpe e tanto nos poderosos. O resultado: O comissário Soap. (ENNIS 2015, p. 151).
A trama desperta o humor negro por meio de cenas e situações escatológicas, como a do personagem Russo que mata um capanga somente ao abraça-lo, desmedindo a própria força, traz à tona a alienação quotidiana que observamos na faxineira voluntária na igreja que confunde vinho com sangue e limpa todos os indícios de crime do padre de maneira inconsciente. Garth Ennis realiza uma obra contemporânea ao xenofobismo, racismo e segregacionismo norte-americano pós-11 de Setembro, ao apresentar somente vilões não americanos. Família Gnucci é de origem italiana, bem como Russo, padre Redondo (Santo) e Senhor Troco. Apenas Elite apresenta um estereótipo norte-americano, mas a máscara não confirma essa informação e assim Elite não consegue ser identificado.
Por fim, o autor questiona a ingenuidade do conceito do herói e da justiça por intermédio das instituições ao fazer com que Justiceiro coloque o herói Demolidor em conflito com a própria ideologia que defende. O Justiceiro busca, por meio da empatia, fazer com que o Demolidor entenda a escolha que ele faz diariamente ao apertar o gatilho contra o seus inimigos.
Esse tipo de reflexão afasta-o do conceito original de Gerry Conway e aproxima-o da interpretação do personagem realizada por Steven Grant, que pondera acerca da evolução do Justiceiro nos seus quadrinhos em relação à de Conway:
Acho que o nosso Justiceiro é bem parecido com o que ele pretendia, só que levado mais longe. Gerry tinha muitas restrições. Ele precisava usar coisas como tiros de misericórdia, porque pessoas não matavam pessoas. Heróis certamente não matavam pessoas nos quadrinhos.
(...) A ideia do Justiceiro de um tiro de misericórdia é que ele dá na sua cabeça ao invés do estômago. O Justiceiro não acredita de fato em misericórdia. (GRANT, 2015, p. 144).
Grant e Ennis são autores contemporâneos que surgem na geração de quadrinhos mainstream norte-americanos, nos anos 1990. Esses autores possuem marcas de discurso comuns, como afirma Dan Mazur e Alexander Danner:
As histórias em quadrinhos de super-heróis se transformaram profundamente após a publicação de O Cavaleiro das Trevas e de Watchmen; as histórias ficaram mais sombrias, os heróis mais violentos, o trabalho de arte mais chamativo; ao longo do caminho, o público envelheceu. Os anos 1990 viram os super-heróis explorando as profundezas de sua nova estética “cruel e ousada”, um aspecto resumido na expressão de Gail Simone “Mulheres em frigorificos” (em 1994, após o assassinato da namorada do Lanterna Verde, cujo cadáver foi descoberto em num frigorífico) para reflectir o tratamento de personagens femininos em vários títulos da época. (MAZUR; DANNER, 2014, p. 215).
Axel Alonso, editor da Marvel, pondera que a relação entre o Justiceiro e outros personagens dos comics sempre será conflituosa, uma vez que, mesmo praticando o bem, será um ato de bondade dentro de alguém psicótico e não como um ato do ponto de vista heróico.
(...) Quando Garth nos certificou que Frank não é um herói, mas sim um indivíduo extremamente perturbado, ele o redefiniu. (...) Frank não é o protótipo do machão. Ele não é Clint Eastwood. Não há um coração sob aqueles músculos, pronto para ser tocado. Ele não esconde um desejo por contato humano. Ele não tem amigos. Ele está sozinho e só tem sua missão. Suas necessidades - comida, abrigo, a ocasional rapidinha sem paixão - são apenas combustível para sua missão. (ALONSO, 2016)
Para os optimistas, Frank Castle considera que são ingénuos e que podem ser poupados, mas não deixa de apresentar a verdade da qual acredita. Isso fica explícito na obra através da conversa com Spacker Dave, Joan e Demolidor.
Garth Ennis trabalha em Justiceiro um tema recorrente na literatura marginal, que é o ódio. O personagem não é movido por nenhum ato de heroísmo, apesar de ser gentil e ajudar aqueles que ele julga inocentes.
O Justiceiro age basicamente pelo ódio e repúdio contra os bandidos, sem clemência. Em muitos casos, o Justiceiro aplica o ódio com requintes de crueldade, como acontece na cena em que Mama Gnucci é morta pelo anti-herói. Seu ódio é solitário e ele não aceita parceiros que possuem uma visão distorcida e diferente da dele, do que seja Justiça com as próprias mãos. O Justiceiro não busca explicar seus atos ou influenciar outros a participar na sua guerra.
A noção de solidão do personagem é nítida, como podemos ver no diálogo e desfecho entre Frank Castle e os seus imitadores. O Justiceiro é fiel a ele mesmo e por isso não se porta como um homem mentiroso. A falta de diálogo dO Justiceiro com a sociedade contemporânea reflecte a constatação dura das certezas acerca da natureza humana que Frank adquiriu na guerra e que cresceram de maneira exponencial ao ser transformado pelo trauma da perda da família. O ato de não querer escutar o outro lado, de reflectir sobre que seja justiça pela via social, o faz declarar guerra, não só aos bandidos, mas à sociedade e ao seu sistema legal.
Nesse aspecto, o escritor Garth Ennis ao apresentar essa obra que retrata um aspecto do quotidiano, aproxima-se do imaginário do indivíduo radical, que adopta um posicionamento político, religioso e social em que só a sua posição é tanto correta como a verdade.
Essa via radical do Justiceiro concatena com a realidade de personagens do nosso quotidiano, que entende que pode fazer justiça com as próprias mãos numa guerra, por exemplo, ou com o recrutamento de pessoas pelo Estado Islâmico no Brasil.
Em São Paulo, um jovem buscou uma Mesquita para lutar pela causa do Estado Islâmico e foi orientado pelo Sheik da Mesquita a desistir dessa ideia, uma vez que o Islamismo não defende a violência. O jovem admitiu que queria participar numa guerra para ser o Justiceiro. O que o motivou a ter essas iniciativas foram vídeos traduzidos para o português do chamado Estado Islâmico, recrutando jovens para serem seus soldados a partir de uma doutrina que defende uma verdade única e o fim do diálogo com qualquer posição diferente do que acreditam. Ou você é herói e está do nosso lado, ou você é o inimigo.
Assim consideramos o Justiceiro como um anti-herói, uma vez que mesmo nas suas histórias ele actua como um soldado contra vilões identificados e estereotipados pela sociedade, mas ao transferirmos essa lógica para realidade, há o risco iminente dessa guerra atingir pessoas inocentes dentro de uma lógica de julgamento arbitrária e distorcida, algo pouco tratado em uma obra de uma via comercial.
A questão que o Justiceiro de Garth Ennis apresenta é a representação do Homem contemporâneo descrente, sem amarras sociais, verdadeiro e radical com o seu código de conduta e movido pelos sentimentos que restam dentro do seu ser, que são o ódio e o consequente prazer ao descarregar esse sentimento numa guerra que ele sabe não irá vencer.
Durante a construção psicológica do Justiceiro, Garth Ennis apresenta um homem que não tem medo da morte, mas da vida quotidiana. Isso fica claro ao mostrar que Frank decide sumir da sua vizinhança assim que começa a estabelecer relações de afecto. Frank compreende que já tentou reatar esse laço com a sociedade, voltar para sua a família, mas que perdeu as sua chance e queo seu destino é caminhar solitário rumo a uma guerra com o mundo e reafirmar seu questionamento acerca do seu papel no quotidiano e imaginário social.
O Justiceiro age basicamente pelo ódio e repúdio contra os bandidos, sem clemência. Em muitos casos, o Justiceiro aplica o ódio com requintes de crueldade, como acontece na cena em que Mama Gnucci é morta pelo anti-herói. Seu ódio é solitário e ele não aceita parceiros que possuem uma visão distorcida e diferente da dele, do que seja Justiça com as próprias mãos. O Justiceiro não busca explicar seus atos ou influenciar outros a participar na sua guerra.
A noção de solidão do personagem é nítida, como podemos ver no diálogo e desfecho entre Frank Castle e os seus imitadores. O Justiceiro é fiel a ele mesmo e por isso não se porta como um homem mentiroso. A falta de diálogo dO Justiceiro com a sociedade contemporânea reflecte a constatação dura das certezas acerca da natureza humana que Frank adquiriu na guerra e que cresceram de maneira exponencial ao ser transformado pelo trauma da perda da família. O ato de não querer escutar o outro lado, de reflectir sobre que seja justiça pela via social, o faz declarar guerra, não só aos bandidos, mas à sociedade e ao seu sistema legal.
Nesse aspecto, o escritor Garth Ennis ao apresentar essa obra que retrata um aspecto do quotidiano, aproxima-se do imaginário do indivíduo radical, que adopta um posicionamento político, religioso e social em que só a sua posição é tanto correta como a verdade.
Essa via radical do Justiceiro concatena com a realidade de personagens do nosso quotidiano, que entende que pode fazer justiça com as próprias mãos numa guerra, por exemplo, ou com o recrutamento de pessoas pelo Estado Islâmico no Brasil.
Em São Paulo, um jovem buscou uma Mesquita para lutar pela causa do Estado Islâmico e foi orientado pelo Sheik da Mesquita a desistir dessa ideia, uma vez que o Islamismo não defende a violência. O jovem admitiu que queria participar numa guerra para ser o Justiceiro. O que o motivou a ter essas iniciativas foram vídeos traduzidos para o português do chamado Estado Islâmico, recrutando jovens para serem seus soldados a partir de uma doutrina que defende uma verdade única e o fim do diálogo com qualquer posição diferente do que acreditam. Ou você é herói e está do nosso lado, ou você é o inimigo.
Assim consideramos o Justiceiro como um anti-herói, uma vez que mesmo nas suas histórias ele actua como um soldado contra vilões identificados e estereotipados pela sociedade, mas ao transferirmos essa lógica para realidade, há o risco iminente dessa guerra atingir pessoas inocentes dentro de uma lógica de julgamento arbitrária e distorcida, algo pouco tratado em uma obra de uma via comercial.
A questão que o Justiceiro de Garth Ennis apresenta é a representação do Homem contemporâneo descrente, sem amarras sociais, verdadeiro e radical com o seu código de conduta e movido pelos sentimentos que restam dentro do seu ser, que são o ódio e o consequente prazer ao descarregar esse sentimento numa guerra que ele sabe não irá vencer.
Durante a construção psicológica do Justiceiro, Garth Ennis apresenta um homem que não tem medo da morte, mas da vida quotidiana. Isso fica claro ao mostrar que Frank decide sumir da sua vizinhança assim que começa a estabelecer relações de afecto. Frank compreende que já tentou reatar esse laço com a sociedade, voltar para sua a família, mas que perdeu as sua chance e queo seu destino é caminhar solitário rumo a uma guerra com o mundo e reafirmar seu questionamento acerca do seu papel no quotidiano e imaginário social.
O auto-conhecimento do personagem coloca-o como um ser que não se ofende, independentemente da opinião doutro personagem, vilão ou herói, pessoa comum ou amigo. É um personagem que se conhece a si mesmo de maneira extremamente consciente e não busca subterfúgios para negar isso.
É um auto-conhecimento que entra em conflito directo com uma sociedade de pessoas que postam freneticamente frases de auto-ajuda, conselhos, verdades absolutas associada a uma foto, selfie ou meme, e que ao primeiro comentário negativo, o mesmo é apagado da sua rede social. O Justiceiro é um ser solitário. Vive uma guerra pessoal; é imperfeito e não interage com o mundo, a não ser numa espiral de ódio, matando repetidas vezes o mesmo personagem, o inimigo que Frank conheceu no Vietname e que se reflete no mafioso, no bandido e nos justiceiros. O inocente não é contemplado nessa guerra e é idolatrado por Castle na figura da sua família. Ao realizarmos um paralelo do personagem com o ser humano contemporâneo, podemos verificar a mesma solidão e a busca por redenção, dependendo da sua história de vida e dos seus traumas.
Observamos pessoas que, através de redes sociais, buscam impor a sua concepção de justiça até outros que passaram por traumas terríveis e buscaram na redenção a sua maneira de aplicar justiça. Nessa sociedade complexa ainda encontramos pessoas que justificam grupos de extermínio como um modo de aplicar justiça onde os meios institucionais não chegam. Assim como o Justiceiro, somos narcisos solitários, com guerras pessoais e que não escutam ninguém. Diferentemente do Justiceiro, porém, temos pouca ou quase nenhuma consciência de quem somos e a nossa concepção de auto-aceitação é bastante questionável. A opinião, os conselhos, a aprovação de profissionais, familiares e estranhos é o que motiva a sociedade da cultura da conexão.
A ideologia do “gostei”, do “joinha” ou do "like" faz parte do nosso quotidiano, preenche os nossos vazios existenciais e oferece um lampejo de esperança de algo diferente da nossa condição inata de seres solitários. O Justiceiro não disfarça a sua dor e coloca-se como um indivíduo que busca mostrar quem é de verdade. A solidão da sua decisão fá-lo indiferente de qualquer crítica de pessoas que, aos olhos de Castle, não sabem quem são de facto. Na verdade, quando o criticam, apenas estão criticando a si mesmos. Apesar de Frank interagir com diversos personagens na trama, o que Garth Ennis oferece ao leitor é um monólogo, do qual temos um personagem que atingiu a sua plena consciência, óbvio numa verdade estreita com uma pergunta básica ao leitor: o que você faria se perdesse tudo e o que restasse fosse apenas o Eu imperativo num mundo doente?
Até mesmo a certeza da morte é diferente entre o Justiceiro e o ser humano da nossa sociedade. Apesar de ser algo certo e concreto, a sociedade tem dificuldade em lidar com esse facto. Castle joga com a morte solitária e não foge do seu destino, encarando-o constantemente ao estampar uma caveira no seu peito.
Artigo académico original pode ser encontrado neste link aqui.
Autor: Alberto Pessoa
Adaptação e montagem: Sérgio Santos
Autor: Alberto Pessoa
Adaptação e montagem: Sérgio Santos